Orley Dulcetti Junior
Doutorando da
PUC-CRE/SP
Artigo científico
publicado na Revista do Congresso em Ciências das Religiões da PUC-Goiânia 2009
Resumo: O
presente trabalho aborda o estudo das metáforas e alusões míticas correntes nos
textos de taoísmo contidas no livro de medicina tradicional chinesa denominado:
Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huang
di nei jing 黃帝內經 ). A partir de extratos dos textos dessa obra matriz
em chinês clássico com a tradução para o idioma português feita pelo próprio autor realizar-se-á, também, uma
amostragem de análise comparativa com extratos de traduções para o idioma
ocidental. Além disso, segue uma avaliação desse fenômeno de transplantação
cultural.
Palavras
chave: Taoísmo, Nei Jing, metáforas míticas, tradução, transplantação cultural.
Taoísmo
A
tradição chinesa é o taoísmo que possui o seu epônimo: o Imperador Amarelo (黃帝 Huang di). Ele é o Imperador mítico fundante da
civilização chinesa e da sua medicina. O título desse regente é uma metáfora, 黃 huang o termo amarelo, primeiramente tem o sentido literal:
a cor do rio e da terra onde surge a nação da China, a cor do metal ouro Jing 金. Na ocorrência do desvio do sentido
torna-se metafórico e pela analogia o termo chinês traduzido pela palavra
amarelo passa a significar realeza, nobreza e perfeição.
O
vocábulo Imperador Amarelo assume uma forma de expressão de
figura de linguagem considerada uma metonímia, sinédoque e um epônimo. Pois, também
se refere ao título do livro de medicina chinesa: Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huang di Nei Jing).
Como a medicina chinesa é a extensão do taoísmo,
principalmente, e secundariamente do confucionismo e até budismo chinês em
textos posteriores ao Nei Jing, segue
uma introdução ao estudo do Taoísmo.
Assim, as metáforas taoístas no texto do Clássico do Imperador Amarelo serão
discutidas numa perspectiva contextual e histórico-cultural do taoísmo na China
do século VIII d.C., época da publicação desse texto comentada por Wang Bing.
O Taoísmo origina-se na China juntamente ao surgimento dos
primórdios desta civilização e forma-se através de um processo de
amadurecimento no transcorrer da sua própria história. (LARRE, 1982).
A atitude prática perante a vida
fundamenta o Taoísmo, o qual pode apresentar diferentes expressões como o modo
de pensar e de sistematizar o mundo, maneira religiosa, de moral e ética.
(CHENG, 2008).
O pensamento do taoísta, o
praticante do tao provém de uma
diversidade de práticas mágico-ritualísticas nos primórdios da Antiga China.
Também, da religião popular, de métodos corporais, exorcistas, médicos,
especulações cosmológicas, além das adivinhações realizadas por meio de
observação dos fenômenos da natureza, dos astros; das atividades chinesas
feitas no isolamento mundano, ou dos artesãos como conhecedores de sua produção
artística. E dos pensadores do período clássico chinês que sistematizam a
cosmologia e a vida no tao, ou caminho. (Ibid, 1982).
No idioma português o vocábulo
Taoísmo compõe-se do neologismo de empréstimo da fonética chinesa do sinograma tao 道 e do sufixo - ismo (grego –ismós,
terminação –μός)
Etimologicamente, o termo Tao, segundo Wieger (1974)
é a “grafia de uma cabeça com cabelos despenteados”, a do taoísta primevo
associado à três passos e “evoca uma marcha dançante”. Os seus passos
reproduzem os “passos do Tao ao imitar o nascimento do cosmos”. O tao é a via,
“ir com a cabeça (shou首)”.
O
Tao traduz-se por caminho, “não só para andar com os pés, mas também para mover
o pensamento”. (WILDER & INGRAM, 1974).
O Tao 道 pode ser traduzido
num sentido próprio e figurado por associação de idéias ao sentido literal como
a Via, Caminho (Tao lu道路).
Via do Céu (天道). Além disso, significa: Via a seguir,
encaminhamento, conduzir, caminhar, avançar; ensinar, instruir (Tao導); falar, enunciar,
doutrina; princípio (Tao li道理),
regra, método; moral (道德), uma
arte de se comunicar, um poder, procedimento. (RICCI DICTIONAIRE, 1976).
O Tao pode ter o sentido de
espontâneo, em chinês
Ziran自然, por si
mesmo. Ele faz ocorrer as Transformações (Huá化), por
isso, o Tao é o movimento espontâneo. Assim, o caminhar pela Via é um processo
continuo de desenvolvimento e aprimoramento interno. A Via está sempre além dos
encaminhamentos pessoais. Presente em tudo e funde-se a todos.
Mestres do Tao e os Clássicos
Os textos de fundamentação das
teorias, condutas e práticas do taoísmo são os Clássicos Taoístas. A “eles que se
recorre regularmente para dar fundamento a teorias e condutas, bem como a
outros textos, escritos por um mestre ou assim revelados” (ROCHAT, 2001).
Há quatro principais mestres e obras
do Tao:o Laozi,o Zhuang zi,o Lie zi e o
Huainanzi com suas respectivas obras: O Clássico da Via e da Virtude (LaoziTaoTeJing), publicado durante a
segunda metade do século III a.C. atribuído ao mítico “velho mestre”, o Laozi.
Os Capítulos Internos de Zhuang zi (Zhuang
zi Nei Pian莊子內篇) publicado
entre os séculos IV e I a. C.. O Lie zi
foi escrito no século IV d. C., oitocentos anos depois de sua época. O
pensamento taoísta de Zhuang zi e Lie zi são similares aos de Laozi (LARRE, 1982).
O primeiro e
mais importante tratado sinomédico da Antiguidade, o texto que pode ser traduzido
por Clássico Interno do Imperador Amarelo , cuja pronúncia em chinês mandarim é
Huang di Nei Jing (黃帝內經) começou a ser redigido no período de
guerras, nos Reinos Combatentes (453-222 a . C.) seguindo pela dinastia dos
Han Anteriores (206-8 a
.C.) até chegar aos Han Posteriores (25-222 d.C.). Após, foi
completado durante os Tang (618-908 d.C.) por Wang Bing (século VIII d.C.) que
acrescenta alguns capítulos posteriormente. (UNSCHULDT, 2003).
O Clássico
Interno do Imperador Amarelo, ou simplesmente Clássico Interno, em chinês, Nei
Jing foi compilado por Wang Bing e
data-se de 762 d. C. E constitui-se de 9 Juan (卷rolos)
a primeira parte, o QuestõesSimples,
o 素問 Su
Wen e 9 Juan a
segunda parte, o Eixo espiritual, o靈樞 Ling Shu.
Cada parte contém oitenta e um capítulos (篇Pian).
O pensamento taoísta de Lao ZI e de Zhuang Zi tem profunda influência sobre a
obra de Wang Bing estruturado pelas teorias cosmológicas como, Tao, Yin Yang,
Cinco Fases. .(TRIADOU, 1995).
Esse texto de MTC possui na sua
estrutura uma forma poética metrificada, ritmada e com rimas para ser entoado à
plena voz. Contém o estilo clássico neotaoísta repleto de figuras de linguagens,
metáforas do taoísmo e alusões míticas próprios da retórica do taoísmo da época.
A Metáfora, em chinês bi (比).
Há uma antiguidade e amplitude de
conteúdo no ideograma bi que expressa
o sentido de comparação e por extensão: a metáfora. Além disso, o termo xing 興 que
significa incitação participa funcionalmente como figura de linguagem na poesia
da China Antiga e por extensão: metonímia (CHENG, 1979).
Ainda, bi perfaz
com o termo xing através da dupla bi/xing, o correspondente
aproximativo ao idioma indo-europeu de metáfora/metonímia.
Consistem numa das seis duplas de principais figuras de sentido ocorridas na poética
clássica estudadas na lingüística chinesa desde a dinastia do Han. (CHENG,
1977).
“O Bi é propor
uma comparação à coisa dita. O Xing é
expressar uma idéia, ou um sentimento a partir de uma coisa evocada”- afirmou Zhen
Zhong ao analisar o “ Clássico das Odes”(Shi Jing 詩經) durante a dinastia Han.(CHENG,1979).
O caractere chinês
possui dupla função: imagem como elemento de comparação e analogia. E o sentido
o qual expressa a idéia ou sentimento através do figurado. O primeiro explicito
e o segundo mais implícito estão presentes e abertos no campo simbólico que
gera outras significações o que permite interpretações novas de ordem
filosófica ou social. Agem no imaginário e amplificam o sentido (Ibid, 1979).
Lexicalmente, o Dictionnaire Français de la Langue
chinoise ( Ricci Institut, 1990) na página 741, traz o termo duplo bi yu 比喻 (3938) como tradução para o
francês “méthaphore, comparaison”.
A China dos Han já possuía linguística própria e seus
textos receberam glosas entre os Tang e os Song. (CHENG, 1979).
Os termos chineses antigos escritos
na literária taoísta são os sinogramas os quais consistem em símbolos gráficos (parte
de um referente concreto e representa uma noção abstrata). Além disso, eles se
caracterizam pelo valor polissêmico (do grego polis, polis, muito e sema, sema, significados), de valor lexical,
referencial ou denotativo (usual, literal), conotativos (figurado) e
principalmente metafóricos e simbólicos. Recomenda-se o estudo contextual para
se obter o sentido exato do ideograma devido a sua pluralidade semântica
(KEH-LI,1991).
Um caractere chinês possui um sentido
próprio na correspondência ou representação gráfica de um objeto concreto (proveniente
da pronúncia da língua falada) e vários outros significados em analogia ao
sentido inicial. (Ibid,1991)
O sentido figurado pode se referir a três regras: por
extensão do sentido próprio, restrição do sentido próprio, transferência de
significação. (Ibidem, 1991).
Os Mitos
O termo mito em chinês pronuncia-se Shen Hua ( 神話 ) e traduz-se por fala dos
espíritos, shen : espiritual...e hua fala.(BIRRELL, 1994). Enquanto para as
línguas indo-européias mito no grego, μύθος
, discurso, narrativa,
mudo, oculto
O conteúdo dos mitos chineses
Há uma singularidade nos textos taoístas
de cosmogonia . Eles não fazem alusão a seres superiores organizadores do
mundo. Mas existe uma espontaneidade ao natural reguladora e manifestante na
formação, mudanças e transformações graduais a partir do Tao, os sopros vitais
Yin/yang, a estabilidade estrutural dos constituintes pré-cosmológicos. Para em
seguida suas coagulações e dispersões darem nascimento ao Céu , a Terra, ciclos
e a antropogonia com o nascimento dos dez mil seres. Também a singularidade esses
mesmos textos com ausência de uma causa que produza efeitos distintamente do
contexto de causalidade grego-latina.(KALINOWISK, 1996).
A
formação do Céu/Terra e dos seres a partir do Tao em Lao zi, 25:
o UM faz
nascer o Dois,
o
Dois faz nascer o três
e o
Três faz nascer os Dez Mil seres.
O
Clássico da Via e da Virtude (Tao Te
King) fornece a cosmogênese chinesa no taoísmo dos Reinos Combatentes, através
dos números, numa seqüência bem estabelecida. O Tao é a Via (espiritual) que
faz nascer primeiro no Vazio original a esfera única, ou o Ovo da mistura
primordial (hundun ) na presença dos
sopros primordiais.
- fig 1 capa do Laozi Daode jing
Em
segundo, esses sopros formam as duas potências: a luz primordial, o Yang ou
sopros Yang e a obscuridade, o Yin ou
sopros Yin. Em terceiro, a movimentação dos sopros Yin/Yang no vazio mediano no intervalo Céu/Terra. São os sopros
primordiais atualizados na formação do mundo e do vivente. (LARRE e ROCHAT,
2005).
fig 2 manuscrito
Os Cânticos de Huang di : o Clássico
Interno do Imperador Amarelo
Excertos de
tradução do Clássico Interno do Imperador Amarelo e alguns exemplos de
metáforas taoístas extraídas do mesmo:
Questões Simples do Clássico Interno do Imperador Amarelo黃 帝內 經 素問
Tratado sobre os autênticos da alta antiguidade, capítulo
1:
上 古 天 真 論 篇 第一 (Shàng gǔ tiān
zhēn lùn piān dì)
fi 2 capa so Nei Jing compilação
Antes dos tempos existia o Imperador Amarelo :昔 在 黃 帝
xí zài huángdì
|
Ele nasceu da Eficácia Espiritual; 生 而 神 靈
shēng ér shén líng
|
Na primeira infância, já conseguia falar; 弱 而 能 言
ruò ér néng
yán
|
Criança conduzia-se com justeza ; 幼 而 徇 齊
yòu ér xún qí
|
Adulto, acharam-no leal e perspicaz ; 長 而 敦 敏
Cháng ér dūn mǐn
|
completo ascendeu ao Céu. 成 而 登 天
Chéng ér
dēng tiān
|
Antes dos tempos refere-se à indeterminação do
espaço-tempo como em “Antes dos tempos houve o Imperador Amarelo”, patrono da
civilização chinesa descendente dos autênticos do Céu da alta antiguidade. Como
ocorre com os ideogramas textuais Gu古 ou Gu故 denotam anterioridade de tempo juntamente aos seres
celestes e perfeitos, assim, shang gu上 古 alta antiguidade
todos esses ideogramas fornecem a noção de atemporalidade. (LARRE, 2005).
No texto
fundamental do taoísmo, o Clássico do Caminho (Tao) e da Virtude (te) de Laozi, Tao Te Jing, capítulo 39, faz a
alusão ao começo absoluto, ao início da cosmogonia num tempo primordial. O
texto contém na sua primeira linha:
Antes dos tempos
(Xi) possuíam a Unidade 昔 之 得 一 者
xí zhī de yī zhě
O
termo chinês Xi, na tradução feita pelo autor como
“Antes (dos tempos)” no Nei Jing,1
faz referência a primordialidade do ser, no Hundun , a mistura indiferenciada
dos sopros vitais, a unidade nascida do Tao.
Ainda,
no Lao Zi, 39, na tradução do próprio
autor pode-se ler a menção a “Os espíritos possuem a unidade na eficácia” (Shen de yi yu Ling 神 得 一 以 靈), metáfora do Espírito, correspondente
ao mesmo termo no Nei Jing,1. E os
reporta ao Uno Primordial. Sugere a legitimidade da autoridade espiritual ou
mandato celeste (天命Tian Ming) do Imperador Amarelo.
O Céu
possui o Uno pela pureza.
A
Terra possui o Uno pela tranqüilidade.
Os
Espíritos possuem o Uno pela sua Eficácia. (Laozi,39
tradução do autor).
Outro
trecho do capítulo 1 do Clássico Interno:
Qi Bo respondeu:
Os Homens da alta antigüidade
Foram os sábios que obedeciam ao Caminho (Tao)
E se regulavam pela luminosidade e obscuridade ( Yin Yang)
E se harmonizavam através de práticas ( taoístas ) e pela numerologia tradicional
(Clássico Interno do
Imperador Amarelo, Questões Simples, 1. Nei Jing Su Wen, 1).
O capítulo três do “Questões Simples do Clássico Interno” (Nei Jing Su Wen) intitulado: “Tratado do nascimento dos sopros vitais em
comunicação com o Céu” começa assim:
Huang
di diz:
Desde a antiguidade a comunicação com
o Céu
Raiz da vida
Enraíza-se na obscuridade e luminosidade
(Yin Yang).
No intervalo Céu Terra, dentro das
seis uniões os sopros vitais
Nove Territórios, Nove cavidades,
cinco entesourizadores, doze articulações.
Todos em comunicação com os sopros
celestes
Deles nasce o Cinco. Deles, os três
sopros .
Ao se ir contra os números
Os sopros perversos afetam o homem
Eis o enraizamento do mandato da longevidade. (tradução do
autor).
O
número três mostra a influência cosmogônica proveniente do Tao (O Tao faz nascer o um,o
um faz nascer o dois, o dois faz nascer o três, e o três faz nascer os dez mil seres . Laozi, 42,).(tradução do autor)
“Desde
a antiguidade” refere-se ao início, primórdio das coisas, antes do tempo.
(LARRE & ROCHAT, 2005).
O tempo mitológico que descortina a
cosmogênese taoísta. A partir do Céu ou a Via do Céu nome completo do Tao. O
termo chinês Tao designa também o Céu, a
Unidade, o Uno (PALMER, 1991).
“Antes,
o Céu e Terra não existiam, nada parecia ter forma”. (Huainanzi,7,tradução de KALINOWISKI, 1996).
O Céu é o Um Primordial, Também é o Tao que segundo Kalinowiski (1996)
consiste na fase pré-cosmológica O dois são os sopros Yin Yang, o três forma o
Homem depois do Yang gerar o Céu e o Yin
, a Terra. Originados Céu/Terra a partir dos sopros iniciais e depois do
Yin/Yang é a fase cosmológica (Ibid).
E o quatro são os quatro sopros que se
repartem e formam as quatro estações. Os cinco são os cinco agentes resultantes
dos cinco movimentos do Yin Yang são: a
madeira, fogo, terra, metal e água que geram a forma dos seres. (LARRE &
ROCHAT, 2005).
A partir do Yin Yang surgem os
ciclos vitais dos sopros das estações, do espaço e tempo, ciclo dos cinco
elementos ou agentes , a condensação dos sopros como substância, sempre sob a
ordenância do Tao. (KALINOWISKI,
1996).
“O
acúmulo do Yang faz o Céu, O acúmulo do Yin faz a Terra”. (Nei Jing SuWen, 5, tradução do autor).
No vazio mediano entre Céu e Terra movem-se e
transformam-se os viventes através dos sopros YinYang. Esses viventes correspondem ao terceiro componente do
Céu/Terra/Homem na seqüência cosmogenética. O homem é o que possui os nove
buracos no corpo, cinco órgãos, doze articulações ósseas e doze condutos dos
sopros no corpo ao quais permitem a livre comunicação ininterrupta com o Céu, o
Tao, nos sopros primordiais (LARRE
& ROCHAT, 2005).
Os
números fornecem como emblemas simbólicos os princípios taoístas numa
hierarquia cósmica, através do sequenciamento da formação do corpo do mundo,
Céu/Terra e depois do corpo do pequeno mundo: o homem.São metáforas de corpo.
São os sopros do Céu, da Terra e da conjugação de ambos: os sopros do Homem
(DESPEUX, 1988).
A perda do mito
na tradução dos Cânticos do Imperador Amarelo
A tradução
inglesa de Ilza Veith:
A tradutora (Veith, 1972) baseia-se na matriz da edição
mais antiga do Nei Jing, de Wang Bing dos
Tang. Mas, não obedece a estrutura poética original do texto e realiza uma
tradução sob a forma de prosa. Descontextualiza a forma.
A característica da narrativa mítica e cosmológica no Nei
Jing é o Cântico: poema ritmado, rimado com estrofes e versos.(LARRE, 1987).
Nessa tradução perde-se o mito.
O título do seu livro:The
Yellow Emperor’s Classic of Internal Medicine pode ser traduzido ao
português como O Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo ( Huangdi nei jing). O termo Nei (內) foi traduzido por “medicina
interna” e possui uma conotação num contexto atual, biomédico, também pode se
tratar de uma especialidade da medicina
Ocidental. De acordo com as observações e classificações de Hsu (2003) feitas sobre o ensinamento nos
textos de MTC, a tradução possui a
maneira interpretativa “modernizada” (xiandahua) do conhecimento da medicina
chinesa, bem como de ‘feitura científica” (kexuehua) uma reinterpretação
materialista das noções taoístas e cosmológicas.
Como fez o autor, Rochat e Larre (1993) expressam ( Huangdi nei jing) como o
“Clássico Interno do Imperador Amarelo” . O termo Nei (內) o íntimo, no centro ou no “coração do mistério da vida,
um ensinamento autenticamente vital: ‘O interno é a Via da via’”. Mantém a
concordância cosmológica do taoísmo: “os cinco internos (wu nei 五內) representando os cinco
órgãos profundos do corpo humano”, em a analogia com as cinco fases da
cosmologia chinesa.
Ilza
Veith (1972) traduziu o Nei Jing, 1,(Shang gu tian zhen lun) com o título: “A verdade natural nos tempos antigos”.”Treatise
on the natural truth in ancient times”
Na primeira
estrofe “Nos tempos antigos o Imperador Amarelo nasceu...”
In ancient
times the Yellow Emperor was born
Embora
se tenha traduzido o advérbio Xi (昔) por “... tempos antigos” a
autora o situa no tempo natural e linear. Não leva em conta o tempo mítico, cíclico e alinear como o da
cosmologia chinesa. Assim como, na análise de Feng ( 2003) pôde
assinalar na tese de doutorado na École Pratique des Hautes Études, em ciências
religiosas :
Essa divergência entre a China e o resto do mundo
pode ser explicada pela diferença das noções de tempo e de espaço na cosmologia
chinesa e naquelas de outras civilizações. A noção cíclica cosmológica afirma
que os movimentos no tempo e no espaço são todos cíclicos e têm marcado
profundamente o pensamento chinês, na qual a noção de tempo cíclico prevalece
sobre a noção linear e o raciocínio correlativo torna-se mais importante que
aquele da causalidade. (FENG, 2003).
Além disso, devido ao fato de Veith (1972, p. 4)
declarar na introdução de sua tradução que para ela é muito difícil decidir se
o Imperador Amarelo foi uma “personalidade atual ou mítica” confirma a perda
mítica na sua interpretação.
- Was a mythical or an actual
personality is very difficult to decide.
Na tradução francesa de Ung Kang Sam
e Chamfrault(1973):
No
tomo II do Traité de Médecine Chinoise Ung Kang Sam e Chamfrault (1973)
traduzem o Nei Jing de Wang Bing dos Tang, em prosa, de modo a descaracterizar
a estrutura original poética e versiva.
No
seu capítulo primeiro, Su Wen,1 (Shang gu tian zhen lun) lê-se traduzido : “ a verdade segundo os preceitos divinos da
idade antiga”.
La vérité suivant lês préceptes
divins à l’âge antique.
Não
ocorre no texto chinês referência alguma aos “ preceitos divinos” . Mas está
escrito: “autênticos do céu da alta antiguidade”.
Embora a tradução sugira a inclusão da
cosmologia chinesa os autores omitem os seis primeiros versos que apresentam a
figura central e mítica do Imperador Amarelo o qual foi analisado anteriormente
.
Na retradução portuguesa brasileira de
Cruz (2001):
A
tradução feita a partir de recompilação chinesa simplificada da edição de Wang
Bing dos Tang segue em modo de prosa, não poética.
O
título (Huang di nei jing) foi
traduzido por Cruz: “Princípios de
Medicina Interna do Imperador Amarelo” numa reinterpretação materialista
das noções do taoísmo. O termo Nei,
traduzido por “medicina interna”,conforme analisado anteriormente recebe uma
tradução modernizada e de feitura científica. (Hsu, 2003).
O
Nei Jing, 1 ou Su wen 1, foi traduzido “Questões
Fáceis” numa reinterpretação do termo Simples (Su) no sentido de
simplificação e ressignifica o vulgar como o simples na desvalorização da
metáfora mítica do termo Su.
Segundo
o Dictionaire Ricci (1990) Su
(素 ): “No taoísmo: estado do ser anterior a toda
determinação, da natureza antes de toda a civilização. Desde a origem.” (RICCI,
1990, p. 863).
Na
primeira estrofe do Su Wen,1 traduz Cruz(2001):
O
Imperador Amarelo, de grande antiguidade, quando nasceu já era brilhante e
sábio, bom de se conversar quando era criança, tinha uma maneira modesta de
proceder e uma lisura de caráter quando cresceu; em sua juventude honesto e
possuía uma grande habilidade em distinguir o certo do errado. Quando chegou a
idade correta tornou-se Imperador.(CRUZ, 2001, p.25).
A noção de indeterminação do
tempo designada pelo advérbio Xi no texto original foi ressignificado pelo
conceito de tempo linear: “de grande antiguidade” conduz a uma interpretação:
“muito antigo”.Assim, mantém o tempo e espaço lineares, destitui-se do tempo
cíclico cosmológico (FENG, 2003).
O
advérbio Xi昔 “outrora”, “Antes” designa um tempo mítico, primordial e
atemporal. (ROCHAT e LARRE, 1993).
No
último verso segue: “Quando chegou a
idade correta tornou-se Imperador” não consta no texto chinês nesse verso que
ele tornou-se Imperador.Mas , sim : “ascendeu ao Céu”.
A tradução inglesa de Zhou (1999):
Zhou (1999) traduz a partir da versão
ideogramática simplificada da edição de Wang Bing. A apresentação do texto
traduzido segue o formato de “mangá”, espécie de “gibi”, “estórias em
quadrinhos”
A
nova escrita chinesa, o ideograma simplificado segue a ideologia de Mao,
marxista e nacionalista (HSU, 2003).
O
texto traduzido omite a primeira estrofe com os seis versos metrificados que
faz a introdução mítica do Imperador Amarelo.
Faz
uma menção no estilo mangá e desmitificado : “Na infância o Imperador Amarelo era muito esperto e aprendia as coisas
rapidamente”.
Segundo
Hsu (2003) um modelo estandartizado da transmissão da MTC nos textos.
Avaliação do fenômeno de transplantação religiosa:
Segundo Michael Pye(1969), no artigo The
Transplantation of Religions, in: Numen:
16, explicita o modelo de transplantação:
Na primeira fase do contato ao se considerar sistemas
religiosos há modificações ideológicas numa
determinada religião. A segunda etapa pode ser representada por
religiosos numa situação ambígua. Isto ocorre devido à coexistência entre os
elementos da tradição que foi transplantada e de conteúdos da outra tradição. No
terceiro estado do processo de transplantação ocorre a fase de recuperação.
Embora haja revalorização dos conteúdos tradicionais a religião assume forma
diferente a anterior.
No que concerne ao presente texto traduzido estudado e
comparado nota-se a ocorrência do fenômeno de transplantação: há a modificação
ideológica do taoísmo para o pensamento ocidental da época ao qual foi
traduzido recebendo uma modernização conceptual e, portanto anacrônica.
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