quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O Tao do Sábio Chinês e o Tao do Ocidente


Conferência Apresentada no VII Encontro de Letras Orientais e Eslavos  da FL/UFRJ em  outubro de 2012, sob título a
"Recepção do dào do Taoismo Antigo no Ocidente Atual"


Introdução

Os primeiros contatos do Ocidente com a China, mais corretamente o Território do Meio, ocorreram somente no século XVI, com a chegada dos jesuítas no continente chinês e Imperial. Os pioneiros foram os padres Matteo Ricci e Ruggieri, que traduziram com o auxílio de um convertido neo-confucionista, para o idioma europeu (latim) os Quatro Clássicos de Kǒng zǐ孔子 (“Confucius”), numa estratégia de evangelização cristianizada do figurismo dos sábios chineses.

Foram seguidos no modelo figurista por Trigauld, depois pelo padre Bouvet. Foi ele quem fez a primeira tradução para o francês do Yì Jīng (易經) ou Clássico das Mudanças, escrito em cartas, para Leibnz na Europa que, também, seguiu o método do figurismo. O livro do Lǎozǐ Dào Dé Jīng ou Lao zi Tao Te Jing (老子道德經) foi utilizado com o mesmo intuito.   

Assim inicia-se a difusão cultural, religiosa e conversão cristã da sabedoria chinesa. Dessa maneira, o tao começa a se difundir para a Europa com significados correspondentes à filosofia aristotélica e ao cristianismo. Dessa maneira o Tao ao ser recepcionado na cultura de chegada, na Europa do século XVII até o XXI, recebeu e continua recebendo profundas modificações nos significados de origem, para obter sentidos ocidentalizados, o que não tem nada em comum com a coerência do Tao da cultura de origem, da China Clássica e Imperial.

No século XX, e ainda hoje no século XXI, a maioria das pessoas fala, escreve livros, faz difusão multimidiática sobre um novo tao, o dào dos Ocidentais, indiferente e diferente ao tao dos chineses. Mas, ainda, pensam que versam sobre o tao chinês. Ledo engano!

Além do mais, os termos chineses associados ao dào como o yīnyáng, o qì, são vertidos aos idiomas Ocidentais como se fossem conceitos europeus, modernos, ou princípios de verdade. Mas, que não têm nada em comum com o yinyang e o qi chinês, que ainda hoje são pouco compreendidos. Assim, faz-se a conversão idiomática e doutrinária pelo pensamento ocidental aliado ao universalismo, hegemônico, eurocêntrico, etnocêntrico, que pode acontecer inconsciente ou conscientemente pelo tradutor-transmissor-difusor, que atualmente, ainda acontece, como uma atitude pós-colonialista, que ainda se mantém colonialista.

Essas ocorrências são de fundo ideológico, religioso e tradutório todas de invento descontextualizado. Por esse motivo, o artigo aborda o assunto do “dào chinês e do dào ocidental” que procura explanar fundamentado nos estudos culturais e linguísticos sobre o tao de modo contextualizado, a partir dos textos clássicos chineses. A escolha de início foi feita a partir da extração do sinograma (caractere chinês) tao () do livro de pensamento da sabedoria chinesa: o Lǎozǐ Dào Dé Jīng (Lao zi Tao Te Jing老子道德經).

Pode-se afirmar que a sabedoria chinesa foi a que produziu o tao, desde os antepassados do Imperador Amarelo, de modo sui generis. Por isso, devem-se considerar ambos, a sabedoria e o pensamento chinês, no mesmo fundo de tradição-transmissão e comentário (chuán zhuàn), num fundo de ancestralidade.

O pensamento é tipicamente chinês, que não foi assimilado pelo ocidente, nem pela filosofia grega ou europeia. Pois, manteve-se distante geograficamente, no histórico-cultural e linguisticamente, ao menos, até os primeiros contatos com os europeus e missionários cristãos, quando chegaram até a China, no século XVI.

A coerência do pensamento de correlação do tao elaborado de maneira não linear e circular desenvolve-se nos procedimentos rituais. A partir da escrita constrói-se o “pensamento feito de imagens” e de correspondências, inteligência combinatória e correlativa.

            A noção de Li () está no implícito cultural do significado do tao. São as correspondências de ressonância de maneira organizada seguindo a ordem interna (li), espontânea do mundo (tao) e as correspondências do yin yáng, como par de complementares situados numa “noção inclusiva”. Distintas das ligações e encadeamentos lineares, como as que ocorrem no idioma indo-europeu. O pensamento correlativo e de sintonia chinês fundamenta a inteligibilidade chinesa, no âmbito das famílias-casas chinesas incluindo-se a família, que seria chamada tardiamente de “taoísmo”.

O li, a ordem do tao ( taoli道理) é a “expressão da inteligibilidade da ordem do mundo no interior do homem como fruto do processo dinâmico e mutacional (yi)”.

 

1.    O texto clássico de Sabedoria Chinesa do Dáo e do Dé: O Lǎozǐ Dào dé jīng (Lao zi Tao Te Jing老子道德經)

 

O texto do Lǎozǐ Dào Dé Jīng (Laozi Tao Te Jing) contém 81 capítulos escritos em versos ritmados e rimados na escrita chinesa antiga ou tradicional em colunas da direita para a esquerda acompanhado de comentários de Wáng Bi, que no original foi caligrafado em chinês clássico (wényánwén 文言文 ou gǔwén 古文) e recompilado por Wáng Bí da Dinastia dos Wei (220 -236 d.C.), bem tardiamente a sua suposta  origem. O livro teve um escritor semi-lendário, o Lǎozǐ, que os jesuítas inventaram um apelido de “Velho Mestre”.

O Lǎozǐ Dào Dé Jīng (Laozi Tao Te Jing) foi traduzido do original chinês da recompilação de Wang Bi, por Dulcetti Junior ao idioma português: O Clássico da Via e da Eficiência.

Logo abaixo segue a capa do livro que contém a obra do Lǎozǐ Dào dé jīng denominada de sì kù quán shū zǐbù (四庫全書子部) publicada pelo Imperador chinês no Depósito Completo dos Quatro Setores das Escritas Chinesas, que começou a ser publicado na dinastia Qin e se findou na dinastia dos Ming, em 1403. Embora, o Lǎozǐ Dào Dé Jīng fora publicado pela primeira vez por Wang Bi na dinastia dos Wei. Então, no Sì Kù, no setor dos mestres (子部)o  livro foi recompilado.








Fig. 1: Frontispício do sì kù quán shū zǐbù (四庫全書子部)
Segue abaixo uma página do rolo do sábio chinês Laozi na recompilação do mestre Wang Bi.

 Figura 2: (老子道德經) Lao zi dào dé jīng no pincel de Wang Bi (王弼)dinastia Wei . Reeditado na dinastia Qing contido no sì kù quán shū zǐ bù子部 : Secção dos mestres

 A linguagem na polissemia dos termos antigos chineses, com o estudo do conteúdo do texto contextualizando-se o significado dos sinogramas arcaicos textuais considerando a polissemia.

            Nessa mesma perspectiva de entendimento da inteligibilidade chinesa seguem-se as análises da temática “taoista”.

Para isso, foi selecionado o sinograma tao (dào) noção relevante do pensamento correlativo ou de correspondências de sintonia (gǎnyìng感應) dos intelectuais do tao, na época ocorrida entre os Reinos Combatentes (V séc. a.C.) e  a dinastia Wei.

Essa noção tem constância no texto do Lǎozǐ Dào dé Jing de Wáng Bi dos Wei (220-265dC).

2.    A Noção de Tao do Sábio Chinês

Para se entender a noção do tao () implica-se, inicialmente, em se analisar a etimologia do caractere chinês arcaico do tao, nas versões escritas no bronze, caracteres ancestrais do sinograma dào (), segundo o dicionário etimológico chinês, o Shuō wén jiě ( 文解), que foi escrito por Xu Shen (100-121 d. C.) descreve: a grafia de uma cabeça com cabelos despenteados (Shou ). Segundo Larre significa o livre trânsito dos sopros ou ventos-sopros (qì). O caractere corresponde a cabeleira do mestre das artes e das técnicas (fang shi), “associado com os três passos” do mestre (chu , este formado pelo radical chi), dar um primeiro passo com o pé esquerdo (o pé yáng) e o outro com o direito (o pé direito) evocando uma marcha dançante (xíng ), avançar, alternativamente, com os dois pés, andar. Assim como se alternam o yinyáng Os passos desse mestre das artes, líder da ritualística chinesa antiga expressa a união com os passos do tao no nascimento do céu-terra e da humanidade. Sendo assim, o tao é a via, ir com a cabeça (shou ). Ele é o caminho, para se andar com os pés, também para se mover o pensamento.

O sinograma tao () é polissêmico considerado ao mesmo tempo na linguística chinesa, noção de unitotalidade, sendo assim, como substantivo o tao é traduzido aqui como “a via”, caminho (dào lù 道路), via do céu (天道). “Via espontânea”.

Além disso, significa: caminho a seguir, encaminhamento. E, como verbo tem os significados de conduzir, caminhar, avançar; ensinar, instruir (tào ou dào ); falar, enunciar, ordem (dào lǐ 道理), regra, método, também, a moral e eficácia (tào té ou dào dé 道德), ou ainda, uma arte de se comunicar, um poder, procedimento.

O tao significa o funcionamento da realidade, da espontaneidade e da animação como movimento da vida.

Devido à abrangência de sentidos do dào no contexto da China clássica designa, também, um canal, um percurso, a órbita dos astros e a direção. Foram em tempos remotos, na civilização chinesa observada pelo mestre das artes. Os significados podem participar de um conjunto semântico coerente do sinograma tao () dào num contexto próprio.

Os termos para o tao (), que foram traduzidos do chinês antigo surgem comumente nos textos clássicos chineses com seus diversos significados culturais, num conjunto semântico muito abrangente seguindo a noção de totalidade e na dependência do seu contexto polissêmico cultural chinês

Para os sábio chineses a noção do tao na perspectiva do caminhar (xíng ), ir, andar, caminho, método, via, sem objeto, nem meta. Assim, a via ou caminho vai sendo feito na medida em que se caminha num procedimento, num encaminhamento, num descobrimento.

 O tao contextualizado no Dáo Dé (Tao Te) possui o sentido de espontâneo (do latim: sponte sua), não de liberdade, nem de vontade, nem de criação. Mas, sim de movimento ou de animação.

            São noções traduzidas da expressão do chinês clássico zìrán ( ) ou “por si mesmo”, “assim mesmo”, ou “assim por si mesmo”, em conformidade, que possui a capacidade de transformação (huá ). Tudo advém do espontâneo tao que permite o humano viver no tao num contexto destituído do sentido do “ser” e da ontologia.

Porque, no chinês antigo não há o verbo ser e se entende a vida relacional e mutável, que nasce como movimento espontâneo e se transforma pelas qualidades dinâmicas do tao (huá sheng ), comunicação invisível entre os sopros de tudo e de todos e a viabilidade (dào) da concretização do () ou sopros espontâneos não soprados por nada, nem por alguém. Encontra-se no nível dos dez mil viventes, com ausência de transcendência.

O tao na interpretação de Wáng Bi (王弼) (226-249) comentarista do Lǎozǐ no capítulo 32, com os sinogramas homófonos escreve sobre uma via que serve de guia. Também, no sentido de instrução e método de viver, em chinês tradicional é Yǎngshēng (養生): modo de vida para se manter, nutrir os sopros (), nutrir a vida, manutenção da vida.

Os pensadores do tao o entendem como a realidade numa perspectiva de continuidade, que na constituição dessa realidade, cada uma de suas partes constituintes integra-se perfeitamente entre si, interpenetrando-se uma na outra, num modo dinâmico, bem ordenado (li) e relacional, até assumirem formas (xíng , homólogo de xíng caminho) e se manifestarem no mundo visível.

O tao considerado antes das formas (wú), em chinês a expressão traduzida é “anterior ao Céu” (xiāntiān先天), que entre os intelectuais da sabedoria chinesa compreendem-se o dào como o inominável (a montante) considerado nominável (a jusante), na medida em que, se manifesta como a “mãe dos dez mil viventes” numa contínua manutenção da unidade da realidade relacional.

A constância mutável do tao organiza, elabora e assume constantemente uma relação de geração (sheng ) de tudo, mantidos numa relação de interdependência. Assim, o dào “constante” (cháng ) é temática central nos textos do Lǎozǐ Dào Dé Jing.

Para melhor compreensão serão realizadas análises críticas, a partir de duas escolhas metodológicas de tradução, numa perspectiva de abordagem comparatista, entre as suas versões europeias, nos idiomas em alemão (Wilhelm, 1921), em português (Wilhelm, 1978). Para o inglês, por Legge (1885, 2004).


3.    O Tao do Ocidente: exemplo de Wilhelm e Legge tradutores e difusores do Laozi dào dé jing (Lao zi Tao Te Jing)

James Legge (1815-1897) foi teólogo protestante e sinólogo orientalista escocês, missionário na China por 30 anos. Professor de chinês em Oxford.





Foto 1: aula de conversão protestante de Legge aos seus alunos neo-confucionistas manchus.

O reverendo e sinólogo James Legge destaca-se por contribuir para a invenção vitoriana de "Taoísmo", rotulou como "religião clássica”.
"puramente  encontrada dentro de certos textos antigos ou "livros sagrados", ou "bíblia do taoísmo” como o laozi dào dé jing  do Taoísmo moralmente puro “(identificado com o TÂo Te Ching),”. Fornece um estatuto sagrado e cristão ao texto do Laozi e ao taoísmo. Na China antiga não havia o sacro, nem o profano, nem tampouco preocupações teológicas e teleológicas.

Nele muitos sinólogos se apóiam numa visão ocidental do taoísmo até o século XXI.

O tradutor Legge entende o Tao como Absoluto. Faz referência na sua versão (Legge, 1885, p.47): “Sugere as palavras do apóstolo João Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor”.

Ainda, Legge na p.14: “O dào equivale ao rodos, o Caminho. O nome ocorre em nossa revisão do sistema cristão do Novo Testamento. Ato dos Apóstolos.” (Cf. Atos IX, 2).
             Já, Wilhelm baseia-se na tradução do título TAO TE KING em valores polissêmicos universalistas cristãos. Para o tao (dáo) citaDeus, Razão, Logos, caminho (Sinn, em alemão; sentido, significado), TE (do alemão Lieben,vida). São todos termos de equivalência tradutiva descontextualizados e de evangelização por parte do Wilhelm. Num comentário sobre a obra do Laozi, Wilhelm apoia-se num trecho de Goethe: “Fausto trabalha na tradução do novo testamento do evangelho de São João como”: “No princípio era o sentido”. “Parece ser essa a tradução que melhor corresponde aos diversos significados do TAO chinês” (Cf. Wilhelm, 1978, p.131).



Foto 2: Richard Wilhelm

“Além disso, no sentido de caminho verte-se para uma tradução na direção de razão e verdade”. (Cf. Wilhelm, 2006, p.2). Ainda, o tradutor Wilhelm acrescenta que, o “Tao é a espontaneidade absoluta no mundo”, com noção de transcendência, teleontológica ( Cf. Wilhelm, 1978, p.28).
Para traduzir o termo TE do Dáo dé (道德Tao Te) segue JOÃO 1,4: “nele estava a vida e esta era a luz dos homens”.  Assim, Wilhelm traduz o Te por vida com significado de ser, vida, natureza, espírito, energias. No comentário de Wilhelm: “O céu representa as forças espirituais” da acomodação cristã. “Assim, ocorre com a tradução dos sinogramas que ele verteu como o vale, o vazio e os espíritos, os deuses (Shén)” com as “imagens míticas mais  antigas” que se associa ao “surgimento da vida pela influência do Espírito”, que considerou também o tao (Cf. Wilhelm, 2006, p.31).
Ele insiste na busca de princípios de eternidade, de verdade, desconhecidos e indiferentes pelos sábios chineses da antiguidade como: “O espírito é então o elemento ativo e criador (Tao)”. O “Espírito e matéria são eternos em sua unidade”. Ainda afirmou que “O espaço entre o céu e a terra, geração da vida correspondem ao firmamento bíblico (Gênese I)” (Cf. Wilhelm, 1978, p. 180).

 






Tao te King das buch alter von sinn und leben (Wilhelm, 1978).


Tao te King O Livro do sentido e da vida (Wilhelm, 2006) na tradução de Margint Martincic para o português.
 
 
Tao te King Lao Tsé (Wilhelm, 2009) em espanhol

 
Tao te Ching.USA: Wilhlem editions, (Wilhelm ,2002)
Seguem abaixo amostras de publicações de James Legge.

 
Laozi  Tâo Te Ching. USA: (Legge, 1885) republicação,2004
 


USA: Portland Floating, Press (Legge, 2009)


 

Lao zi. Kansas: Univ. Kansas (Legge,2009).













Laozi tao te ching. California : Bn publishing . (Legge,2009). Oxford: Oxford univ press Dover  (Legge,1997).


Oxford: Oxford univ press Dover  (Legge,1997).
 

 



Maryland: Manor (Legge,2008).


A seguir ilustram-se a temática do tao no Laozi, com o recurso metodológico de cotejos, para fins de análise comparativa. A partir da tradução de Orley Dulcetti Junior do texto original em chinês clássico para o idioma português brasileiro.






 







 
4.    Reflexões Conceituais

A partir de apropriação em teorias culturais e linguísticas em Jullien, Hsia, Girardot, Jensen e Genette, Dulcetti Junior baseia-se para realizar as suas considerações analíticas-críticas das traduções descontextualizadas, que servem também para fundamentar a discussão das traduções de Wilhelm e Legge.
            Com a apropriação nas teorias de Jullien pode-se afirmar que, a universalidade do conhecimento torna difícil a tarefa de se pensar fora dela na presença da cultura ocidental hegemônica nos últimos séculos com o “uniforme”, um conceito da produção na padronização do modo de vida, produção, consumo e midiático que discretamente, sem ser notada recobre a diversidade cultural. Sendo que há outras culturas e outras formas de pensar. Assim como na China Antiga (zhōngguó中國) o pensamento chinês e os caracteres chineses antigos são indiferentes ao pensamento greco-romano-cristão e ao idioma indo-europeu. A tradução universalista empresta a medida comum do universal que se vale das invariantes e equivalentes entre duas línguas e culturas que se ignoram veiculando o pensamento do tradutor no “espelho do outro” num aprisionamento de escolhas o que leva a ilegibilidade tradutória com o uso do invariante e do equivalente. O invariante tem seu pressuposto na universalidade de princípio e verticalizado e as variantes culturais sendo secundárias. Na tradução universalista dissimula-se no equivalente funcional que projeta a universalidade transversa ao nível do recorte, de efeito ilusório sem contexto em comum faz atuarem “o mesmo” e o “outro” entre linguagens culturais que não se falam e nem “sequer se olham”. São traduções forçadas e inadequadas, pois também são feitas as aproximações fáceis, com rupturas e sem fio de continuidade.
Com a apropriação em Hsia, pode-se afirmar o seguinte, que o termo euro-sinica do século XIX, trata-se do neologismo de Hsia para definir o construto edificado pelo europeu da cultura chinesa proveniente do passado histórico, desde o século XVII, que chega aos XX, com perspectivas futuristas a partir do encontro entre ambas as culturas, com desenvolvimentos interculturais num planeta muticulturalizado. O reconstruto europeu ele denomina de Chinesia. Mais tarde, os americanos introduzem o neologismo orientalismo sinológico com Said. Os sinólogos surgirão mais adiante no histórico-cultural China-Europa. Há duas fases, a primeira começa com o figurismo do jesuíta Ricci e seguidores missionários na China, século XVI. A difusão figurista na Europa que chega aos filósofos como Leibniz, Voltaire, entre outros seguindo o evento da acomodação bem simpatizante. A segunda fase dos protestantes missionários na China que conduzem a acomodação até filósofos principalmente alemães, como Herder, Hegel, ingleses e escoceses. No terceiro período destacam-se teólogos protestantes sinizados como Wilhelm, Legge.
Seguindo-se e desenvolvendo-se a teoria de Jensen (1997), pode-se confirmar que, o figurismo jesuíta faz a manufatura, a partir da difusão cultural e das idéias cristãs, o fazer com as mãos”, no manufaturar a literatura na forja figurista dos jesuítas até se chegar na industrialização e comércio dos textos acomodados, que foram pelos jesuítas manufaturados na sociedade européia. Neste âmbito manufaturam o natural em artificial, fabricam, inventam, reinventam, espalham amplamente, em cada empreendimento.  A título de exemplo a  invenção do nome mitificado de Confucius, como se fosse um filósofo da natureza, o nome dele foi criado a partir da fonética Kǒngfūzǐ com a introdução das ideais figuristas, critianizados. Da mesma maneira acontece com Lǎozǐ. Inventou-se um apelido jesuíta de Velho Mestre, como se fosse um fundador mítico do taoísmo filosófico. Assim fazem e refazem com todo o histórico-cultural, escrita e livro de origem chinesa forjados, como se fosse uma ficção inventada, fabricada pelo figurismo jesuíta. Os jesuítas também manufaturam ao considerar os textos Clássicos Chineses como Cânones (de Canon do grego: κανών), Canônicos semelhantes a Biblia do Velho e do Novo Testamento.
Com base na teoria da invenção do taoismo de Girardot (1999) pode-se considerar que, a incorporação do cristianismo nas edições de Max Müller, linguista e mitólogo, com novas orientações filológicas e orientalistas, com raízes no passado histórico do fenômeno missionário na China com abordagens comparatistas universalistas cristãs principalmente no século XIX, com a invenção de Textos Sagrados do Leste, da China publicou traduções dos Clássicos Chineses com a colaboração do teólogo missionário escocês Legge que eles sacralizaram como Textos Sagrados Chineses. Afirma Girardot (Cf. Girardot, 2001, p 23) que, o paradigma protestante de Legge conduz seu legado até o século XX, numa abordagem incluída numa visão vitoriana do mundo universalista. Inventa-se o taoismo como uma religião, que Laozi é o chefe Deus, ou um dos chefes deuses, O taoismo inventado foi considerado uma filosofia ou religião, por Legge e por estudiosos acadêmicos, sinólogos e filósofos que o seguiram e a Bíblia taoista na China foi atribuída ao LaoziTaoteChing, que Legge traduziu por O Tao e suas características, num orientalismo sinológico vitoriano. Os Clássicos Chineses recebiam a denominação de Sacred Books of China.

Com base na apropriação no modelo de hibridação e do figurismo discutido por Lackner, pode-se considerar as seguintes  reflexões conceituai “Método de abordagem figurista na China e na Europa do século XVI, XVII e neofigurista no XX”. O fenômeno promoveu mudanças profundas na interpretação do pensamento chinês antigo, do taoísmo como em Lao zi, Zhuang zi, Huainan zi e do léxico dos sinogramas com especulações enganosas e simbólicas. No amplo sentido o figurismo é um método hermenêutico de exegese bíblica com as seguintes noções universalistas. A origem comum da humanidade A revelação esotérica da verdade, tanto quanto um sábio iniciado como o Hermes Trimegistrus,. A natureza perene e divina desta revelação esotérica. O híbrido misticismo da China prevalece no ocidente atualmente como sendo o “renascer de idéias figuristas numa vestimenta religiosa e não-científica”.. E, tais modificações lingüístico-culturais dos figuristas e neofiguristas refletem-se nas traduções ocidentais atuais do Laozi.

Com base no Modelo da Intertextualidade de Genette consideram-se as seguintes reflexões conceituais, que os textos apresentam uma reexpressão textual que decorre na dificuldade nas traduções comunicadas pelo texto, na intextualidade o traço intertextual pode permanecer claro, implícito, ou desaparecer com a transformação do significante original e se descontextualizar com distanciamento fraco, médio ou imenso. Ele é imenso ou máximo quando a cultura de acolhida é diferente da origem. Como ocorre com o Laozi Dào DéJing de origem chinesa antiga distanciado no tempo, espaço e na cultura de recepção europeia, que não dialogam escapa o conteúdo essencial, formal, estético devido ao peso cultural ideológico da receptividade européia. Ainda, com base em Genette, o conhecimento inútil de se explicitar bifurca  e desvia o texto de origem ao texto traduzido que separa um texto ao outro. A tradução descontextualizada implica na recontextualização  do texto num novo ambiente pelos elementos culturais da recepção do mesmo. O texto remete o leitor ao fraseado da cultura do texto traduzido do universo de referência. 

 
Conclusão


O texto materno possui legitimidade e fecundidade cultutal-linguistica e estética. A tradução da obra matricial feita pelo autor e conferencista para o português procurou manter a preservação dessa autenticidade cultural-textual. As traduções europeias após amostragem e comentários dos cotejos mostraram modificações profundas entre o significado polissêmico dos sinogramas taoistas do texto original com as versões nos idiomas alfabéticos europeus de Wilhelm e Legge. Eles escreveram e traduziram o tao do Ocidente, ou seja, deles próprios, que não tem nada em comum com o tao do sábio chinês. Enquanto que, o Laozi Dào Dé Jing é fruto da cultura antiga chinesa, é o tao do sábio chinês. As versões ocidentais são produtos da cultura europeia, o tao do Ocidente, diferente da China Antiga. Então, depara-se com uma dificuldade, barreira, um “borrão”, entre diferentes culturas, a do tao do sábio chinês, e isto implica se deparar com distintas dimensões “filosóficas”, linguísticas, estéticas, na arte de viver como na medicina. São dois tao que não se dialogam, nem se correspondem, não tem nada haver um com outro: o tao do sábio chinês no extremo leste e o tao do Ocidente, no extremo Oeste.

As noções, incluindo-se  o tao do sábio chinês, que compôs o texto do Lao zi, também, os Clássicos de Medicina Chinesa, como exemplo o Nèijīng ou Clássico Interno encontram-se distanciadas no tempo e espaço e no significado que se perde, se esvai, não há. De um lado, uma cultura, a da China do sábio do tao chinês, que desconheceu a Europa até o século XVI; do outro lado, outra cultura, a Europa atual do momento da publicação das versões Ocidentais, do tao do Ocidente. Por sua vez, a cultura da Europa que hoje se faz conhecida foi constituída por um conjunto de outras culturas, principalmente, a greco-latina. A cultura europeia herdou a filosofia, estética, linguagem e medicina da Grécia e de Roma, que formulou o latim e produziu a romanização disseminando-se, territorializando-se no Ocidente. Numa visão de corpo e alma dualista e biomédica galenicista, cristianizada e universalista da cultura que escreve com letras e alfabeto greco-latinos, oriundos do idioma indo-europeu, que nada tem em comum com o sinograma do tao do sábio chinês.

A base conceitual elaborada segundo a difusão cultural fundamentada em Rogers elucida o fenômeno entre as diferenças culturais de inovação de ideias e crenças religiosas, o cristianismo, moralidade, conduta, seguindo Montgomery na adoção das mesmas, com as suas dimensões, e consequente espalhamento. Com a apropriação nesses autores fornecem-se subsídios para se explicar e entender o fenômeno de modificação cultural e textual na translação do texto de origem do sábio chinês, da China Antiga, para o texto de acolhida pelas traduções europeias de Wilhelm, com o tao do Ocidente. Por uma comunicação, que se dissemina. Porém, de modo não efetivo, com dominância da cultura europeia sobre a do sábio chinês. Assim o texto original sofre modificações por outra cultura e no texto de chegada à Europa, na fase de implementação.

Ainda mais, a hibridação apresenta o fenômeno de um neofigurismo, segundo Lackner, que o misticismo híbrido do leste com o oeste revive um novo figurismo incorporando elementos aristotélicos e religiosos cristãos, na Europa atual. Assim, os textos analisados de chegada mostram-se figuristas, no século XX-XXI.

A corrente da intertextualidade de Genette afirma que, o hipotexto se descontextualiza na formulação do hipertexto feito na cultura de chegada e o Clássico da Via e da Eficiência (Laozi Tao Te Jing) sofre modificações contextuais, assim a mobilização de empréstimo produz um hipertexto de acordo com a época da produção da textualidade como ocorre com a de Legge e de Wilhelm que inventam  e traduzem o tao do Ocidente.

Também, apontam para mostrar que, tanto as duas culturas não se encontram, nem dialogam, bem como, entre o texto de partida e de chegada, apresentam diferenças culturais relevantes suficientes, para que as versões europeias de Legge e de Wilhelm sejam portadoras de transformações significativas de acordo com o olhar da Europa contemporânea, que descontextualiza a obra original portadora de legitimidade da ancestralidade do Imperador Amarelo representante da antiguidade cultural-textual chinesa do Clássico da Via e da Eficiência, do sábio chinês, o Laozi.

 

Bibliografia

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Hsia, Adrian. Euro-Sinica.Taiwan Journal of East Asian Studies. 6:17-58. Taipei: National Taiwan University Press, 2004.

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Wilhelm, Richard. Tao Te King. Das buch vom sinn und Leben. Köln: Eugen Diederichs Verlag Gmbh & Co Kg,1978.

 

4 comentários:

  1. MAS DR. ORLEY, VOCÊ NUNCA ME FALOU DESSE BLOG. SÓ SOUBE HOJE ESCARAFUNCHANDO O FACE DO LUIZ. Mas como que um texto desses não é comentado? a não ser que não se tenha compreendido ou não se tenha afinidade. Se bem que sou duvidosa para falar. É um grandíssimo prazer para mim ler este texto. E que venham muitos outros dessa sua Cabeça-Coração. Um Abraço.

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  2. Caríssima Vania o Blog foi recém elaborado, como você pode ver na data. Muito obrigado pelo seu comentário. Você é humilde e autêntica. Certamente,virão mais artigos. Eles estão no forno. Aceito sugestões,amiga. Peço que me ajude a divulgá-lo. Do vazio mediano do meu coração, sou sincera e carinhosamente, Orley Dulcetti Junior (甘gān)

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  3. Parabéns pelo artigo Orley! Você foi muito feliz em suas colocações.
    Já é hora de desmistificar o entendimento acerca do Tao. Muitas traduções deveriam ser revistas e corrigidas.

    Devido às traduções descontextualizadas, feitas em tempos antigos, todo esse conhecimento puro acabou ficando sob um pano repleto de misticismo e mal entendidos.
    Além de ex aluno sou um grande admirador de seu trabalho.

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  4. Caro Dr. Orley, há muito tempo descobri que um padre jesuíta do sec XVI, na China, propôs ao papa uma versão alterada do 1º versículo do evangelho de S. João: "No princípio era o Tao". O papa não concordou. Nunca mais consegui recuperar, em detalhes, essa informação. O senhor tem conhecimento desse fato? Teria sido o padre Ricci? Não quero me alongar aqui, mas esse assunto pode ser bastante ampliado. Grato antecipadamente.

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