Num
mundo longínquo nas brumas dos tempos remotos habita uma tartaruga na ínfima
caverna entre as montanhas de uma ilhota ao norte dos mares gelados.
Ao
final de cada ciclo natural completo ela protrui o pescoço para fora da morada
sombria. De modo a perceber todo o movimento dos quelônios alvoroçados imbuídos
de fazer os primeiros preparativos para festejos primaveris da colônia no
aguardo das eclosões dos ovos dos recém-chegados convivas.
Sheng,
a tartaruga-fêmea da ilha negra do norte possuía um ar ascético entre os da
sociedade quelônia. Talvez pelo seu interesse em assuntos da espontaneidade e
do invisível que sentia em si própria as influências maravilhosas. Ao contrário
dos demais que tinham certo desinteresse pelos afazeres daquela sociedade
insular.
Há
quem diga que ela tem costumes exóticos e às vezes, até mesmo, incompreensíveis
pelos insulares dos outros arquipélagos e até mesmo pelos seus compatriotas. Ora,
o que se deve pensar daquele que, no alvorecer estica o pescoço sobre a rocha
mais elevada do penhasco, emite um som longo e estridente ao manter-se imóvel
durante horas. Enquanto isso, todos os demais se despreguiçam, içam-se, em
passos curtos e lerdos ao moverem-se na busca obsessiva de alimento.
Qual
a finalidade de comer, simplesmente? Enchem-se a pança, mas esvaziam-se no mais
profundo e interno. Com seu abissal pleno, o alimento deixa de ser o objeto
principal da vida e tornam-se as influências sutis as reguladoras de toda a
vida e de tudo no viver no visível e no invisível.
Parece
que a nossa personagem é exótica para uma tartaruga, diferente das demais se
ocupa na busca incessante e espontânea do saber-viver.
Ah,
essa tartaruguinha aquática costuma desaparecer aos olhos das outras
tartarugas. Cada dia, numa nova empreitada... Ela procura cruzar os distantes mares.
Ela vai cada vez mais além entre os quatro mares sem começo, nem fim. Quando
chega ao fim é que já está no seu começo... Sempre ao voltar, se depara com os
da ilha, os preguiçosos tanatônicos que sob a luz solar dormitam ou insistam na
lenta e duradoura falta da marcha espontânea. Porém, seguem semi-conscientes
nas suas concatenações desenfreadas e mal pensadas espreitadas em direção à comida
assaz desejada.
Desta
vez conta aos desinteressados e escassos ouvintes que chegou muito próximo da
linha divisória com a ilha do leste (se é que há divisão, pensa ela, num mundo real-imaginário
e este real não-visível e indizível, que em tudo há).
Qual
leste, que nada! Nisso, todos concordavam sem dar o mínimo de crédito à
aventureira negra.
Nem
adianta mais dizer que ela quase se afogou na correnteza marítima e persuadida
de sua convicção esforçou-se além de suas possibilidades no enfrentamento do
naufrágio. Isso não bastasse defrontou-se bravamente com os vorazes e
esfomeados tubarões gigantes. Famosos, naquelas paragens oceânicas por serem
comedores de tartaruguinhas idealistas (principalmente exóticas e esquizóticas).
E, mesmo assim, que a enxergassem como uma de fora e diferente das outras, assim
mesmo, venceu predadores e revoluções dos mares, a nossa perseverante negra e
aquática.E, ninguém se impressiona,
nem tampouco atende ao chamado dela.
– Hei, venham cá, a vida
não é só isso o que vocês repetidamente fazem e nem bem sabem: o por quê. Mas
saber para quê? A vida parece ser apenas feita de costumes, os usos de comer,
beber, tanatosear, procriar...
Mas, os habitantes
ilhóticos e tartarugueses preferem nada, nadar e nem pensar nisso ou naquilo
outro, eles têm suas metas, metamorfoseiam-se sem perceber que o que muda é por
fora e por dentro. Nada muda! Porém, para a nossa tartaruga há a transformação
ininterrupta e silente no interno. Para ela a sutileza interior permite a
transformação silente e inescrutável. Ah, então incita a mudança por fora qual
uma raiz de árvore que nascerá a cada movimentação no in-formal, pela sutil
transformação constante e ininterrupta, de acordo com a propensão da ocasião. E,
em cada respiração uma nova transformação começa no inefável e continua sem
rupturas no perceptível do mais ínfimo ao infinitamente grande e visível.
Desse jeito está sempre
ela propensa ao acontecimento, a ocorrência propícia de modo espontâneo sempre
sob a influência maravilhosa e original. E, nisso não se importa ela em tirar
proveito da situação, se será a melhor ou a mais esperta. Na busca do
espontâneo original encontra-se nele sempre o nascimento de uma ocasião
propícia, disso a eficácia.
- Queremos o melhor
resultado e o efeito é que mais importa, não sabemos da causa. Deixamos para os
especialistas das especulações.
Ela replica: nada quero,
pois o querer é egótico e ambicioso.
Mas, não me solto na correnteza marítima. E, sim, vivencio intensamente o advir
da propensão no meu íntimo e neste, a minha obtenção. E, o resultado vem e vai,
bascula-se e a escolha é a ocasião, não ocasional, mas na origem de tudo, o
espontâneo.
E, se fosse eu um sábio não pensaria. O sábio nada
sabe sobre as coisas, mas vai, além disso, pois, interessa-se ainda mais, com a
relação das coisas, os entre-meios e não a coisa em si: o eu quero isso, ou é
isso o que é, e o que é, então é o que mais se vale.
Mas, não se necessita de
nada mais, pois se têm a raiz invisível e chegar até esta se deixando brotar o
fruto, que não se faz, nem se produz, também não é agente da passiva,
transforma-se da sutil originalidade que acontece no espontâneo. É o saber sem
se preocupar com a sabedoria. Nesta o objeto em si não é a meta, nem tem
maneira objetiva e muito menos se almeja. Não me inspiro em nada, apenas
respiro o sopro, que por ninguém foi soprado, mas pelo vento original; nem
sacro, nem pro-fanum, apenas traço
meus passos no com-passo e com-tudo e mais-nada é tudo com todos e todos com
um. Não o um supremo ou o uno. Mas, na medida das coisas de uma ação eficaz não
interferida, cuja morada, também se move dentro de mim. Sendo dessa maneira
obtenho o agir, fora de mim, que juntos formam uma dupla inseparável na dosagem
da medida justa e correta.
E, se nada falo, ajo por
dentro, se nada falo é porque não penso, por fora; fica sus-penso, então não
penso. É que o pensar é também o não pensar que fica na mesma condição das
coisas pensadas. Aí, deixo e minha estratégia é simples: não ter estratégia.
O funcionamento relacional
é o fundo da vida que toma a frente e que de ante-mão é a mão antes de tudo,
que não se conta nos dedos, acena-se, gesticula-se o gesto do invisível espontâneo,
que a tudo gera e influencia num processo contínuo. Assim, acontece assim, simplesmente...
O simples é o sutil que no denso se transforma em silêncio e assim nascem todas
as coisas e se estas são a vida, por assim só, continuamente, sem antes nem
depois, no acontecimento pela transição espontânea, por isso mesmo e assim por assim
mesmo, sem mais nem menos...
Dia
após dia, ela não se entretém na luta pela vida comum, como é com todas as
outras. Mas, labora em ultrapassar as suas possibilidades tartaruguêsas ao
encontro da comunicação visível-invisível e vice-versa.
As tartarugas
esqueceram-se de suas ancestralidades.
Ah, Gui (lê-se kuei: tartaruga, em chinês) lembra-se
bem dos ensinamentos transmitidos pelos seus ancestrais e pais, eles que foram
a última linhagem ritualizada dos antepassados.
A tartaruga primordial
edificou através dos sopros vitais originais Yin/Yang o Céu-Terra e sobre o
dorso assentava-se o Céu e no ventre a Terra. Assim, mantinham-se as cinco
fases dos movimentos dos sopros luminosos e obscurecidos (yin yang) com as
quatro patas que serviam de eixos de comunicação nos quatro orientes. Enquanto
que, o seu corpo manifestava a sutil influência da origem espontânea. E a
longevidade inerente a duração da sua existência corporal, de acordo com a
unidade. A imortalidade do corpo de sopros feito de essências com sua influência
sutil e maravilhosa pivoteia na individuação reconhecidamente, através das
vivências cíclicas.
Uma descendente remota
transmitiu os nove palácios de divisão da Terra em união com os Oito acúmulos do
Céu surgidos dos sopros originais e ensinou aos mestres autênticos da
antiguidade chinesa o método (tao) da
tartaruga maravilhosa de inteligência espontânea.
A
inversão após a queda do conhecimento foi conseqüente ao exílio do corpo ao influente
e maravilhoso do original. Desde a época da transmigração das tartarugas do
outeiro primordial ao mundo atualizado, manifestado.
O
caminho da tartaruga maravilhosamente guiada pelas influências sutis consiste
na reconquista da união com o tao, o
movimento espontâneo movido num intuito eficaz impulsionado pela luminosidade influente
e onipresente invisível no seu interior corpóreo. Com isso, a conduta mantida
sob a regência da luz original em si condiz com a sua espontaneidade e
autenticidade lhe torna a obter eficácia.
Para
além das coisas faladas, a tartaruguinha continua a busca da eficácia. Não
havia dúvidas, nem incertezas, somente a clareza sutil acenante no seu interno,
dentro das suas cinco vísceras prioritárias de sua vida cosmogênica, análogas
ao centro original, com seus quatro orientes seguindo a ordem, ordenança
anterior ao Céu.
Tanto eficaz além da fala que,
até as carapaças dos seus ancestrais serviram de instrumento na queima para
obtenção de soluções assinaladas pelo céu nas suas fendas escavadas gerando
sinais ventosos que dirigiam as atitudes perante a vida. Assim, surge a escrita
chinesa e os sinais assinalados pelo regulador céu incitaram ventosamente a
resposta de uma inteligibilidade tartaruguêsa, entre as primevas tartarugas
dançantes em sintonia com a música do céu regulador manifestada em sinais
celestes na movimentação ventosa dos corpos celestes do corpo do mundo. Nesses
rituais havia conjugação do invisível com o visível numa mesma condição. Quem
fazia os rituais eram a tartaruga-rei e a tartaruga-rainha.
...Entre
uma maré da vida e outra, novas investidas. Os quatro mares do oceano primordial
estão contidos nela, silentes e seu coração consciente disso. É a sua paisagem
interior tal qual é o corpo de sopros do mundo, assim também, como o de nossa
tartaruga negra como as águas oceânicas dos primórdios nos confins do mundo
ainda imanifesto.
Ela na tentativa de deixar
possuir-se pelo seu próprio espírito atravessa um dos quatro mares até atingir
o mar do leste. De longe... Ela percebe que os habitantes dessa nova ilhota,
além de possuir escamas são verdes, põem fogo pela boca e se parecem com
serpentes-lagartos, alados e voadores. Na medida em que, se aprochega dos
insulares do leste surge um súbito vento vindo do oriente e um clarão muito
intenso promovem uma reviravolta no corpo da nossa pequena e aquática
personagem que se sente como numa implosão, eclode de suas carapaças, cai num
abismo marítimo, perde sua consciência. Não sabe bem o quanto permaneceu assim
e ao se despertar vê-se numa planície verdejante infinita. Porém, há algo de
diferente, não se sente mais aprisionada naqueles duros cascos e pesadas patas
quadrangulares como a imagem terrestre. Agora, se sente mais potente esguia e
escamosa metaformoseia-se em uma serpente aquática, Vence as barreiras
abissais. Dessa vez nada de modo veloz entre - ondas e emerge na luminosidade do
alvorecer. Ganha garras, asas, uma longa cauda e uma grande cabeça de: dragão.
Subitamente, inicia a
falar e a compreender a língua dos dragões da madeira no leste. Tão veloz seu
vôo quanto seu pensamento e imaginação. Os seus sopros têm a capacidade de tranformar
qualquer coisa. A cada baforada uma nova natureza forma-se. Os dragões
comunicam-se pela fala do fogo, aceso e apagado, em cada sopro exalado, uma
idéia propensa. O seu corpo formado de sopros da madeira permite que acolha e
drague do Céu os sopros celestes e da Terra os sopros terrestres e então eles sopram
luzes e das luzes surgem sombras e da união de sombras e luzes, luzes-sombras esvaziam-se
por dentro e no vazio interior suas visões transpõem o espaço-tempo e
legitima-se a originalidade do não-ter corpo assim, em ter um corpo assim, num
constante e mutável movimento: o do surgimento ou a madeira, que vê da árvore,
que vem da raiz de tudo, que vem da espontaneidade.
Os dragões possuem
moradias nas cavernas das montanhas do leste que nesse mundo são chamados de
porta dos dragões, no idoma draconês é long
men. Os vales também os têm.
Tão cedo se desperta e vai
soprar por todo o vale. Entre as nuvens. Ainda mais no alto as luminárias, suas
confidentes testemunham a vastidão do seu voar. O passatempo preferido. Mas
também têm suas tarefas, dentre elas as mais dignas, a de colaborar na
transformação das coisas propensas e advindas do espontâneo no invisivelmente
visível e no visivelmente invisível.
A melhor das aventuras está
na velocidade do vôo. Conta-se que há miríades de dragões, mas nem todos são
vistos ou no céu, na terra, no ar ou no mar. Porque atingem tal ligeireza que
nenhum aparelho especial pode captá-los. As suas assembléias não acontecem
nesse lugar, mas num espaço invisível, um não-lugar. Num tempo que não é mais
esse tempo. Os seus poderes vitais concorrem para uma única condição: fazer o
que se deve ser feito com sintonia e entrosamento nas manobras aéreas.
Na medida em que cada
sopro assoprado pelos dragos seja um acúmulo de alento não soprado por ninguém,
nenhum ser, mas surgido assim por si mesmo, chega-se ao porvir, com o seus bafos
quentes de fogo que meneiam a vida nos vales, nas montanhas e em tudo mais.
O seu alimento é a
constância entre o dragar e o bafejar. O voar e permanecer no alto e aterrissar
e permanecer no baixo. Entre o acima e o abaixo as mudanças e transformações
ocorrem num farfalhar das asas em meio a tudo que vem de cima e chega abaixo.
No centro desse não-espaço
habita o dragão amarelo de cinco garras. Ele permite as relações de trocas em
todos os quadrantes a partir do centro numa atitude de intermediação entre o
alto e o baixo. Ele pode flutuar entre as ondas do mar sem desmanchá-las. Tem
grande sabedoria, conhece todos os mundos e foi chamado de dragão imperial. É o
dragão-rei. Ele reina pela movimentação dos sopros da terra e não do fogo, nem
da madeira. E quando ele termina sua existência terrena, cada parte dele
origina um constituinte dos três: de cima, debaixo e do meio. Os olhos formam
sol e lua, seus músculos, as montanhas, seu alento o ar, o vento e dá vida as
coisas. As veias faziam os trajetos dos condutos sutis e concretos do
subterrâneo, outros de seu habitat, chamam-se veias do dragão, até hoje. O
humano será feito da menor vida que se hospeda nos seus pelos entre as escamas.
A vida de dragão é uma
vida transformante, a cada passo sobre a terra, o mar, na montanha ou no vale,
uma nova mudança de vida...
E, o nosso dragão-rei voa
e por onde voa espalha sopros de vida que nascem, mas que também morrem se queimam
e surgem as suas cinzas, delas surge o fogo que não queima, mas que transforma
na condição do seu ciclo na sucessão das coisas espontâneas e assim se vai e
assim se vem. Esse novo começo ainda não é um começo e quando chegar ao final será
o re-começo.
O dragão sobe as montanhas
celestes e fica sem as escamas. Surgem as penas. O sopro transforma a boca em
bico e as asas majestosas são a imensidão do tamanho do mundo
O céu azul no infinito,
nele a ave maravilhosa de tamanha infinitude de coloração vermelha nascida do
fogo. Fogueia, fogueia. No bater das asas monta sobre o vento e voa, voa... Lá,
do alto regula o vento abanado pelas suas asas num soprar através e além do
fogo, então imanifesta-se à medida que se manifesta no ritual festivo fogoso e majestoso...
Sobe o fogo e formam-se nuvens então sobrevém a descida d’água, a sua acolhida
pelo solo. Assim é um vai e vem, vem e vai na cadência da movimentação das asas
da ave maravilhosamente vermelha,cor do fogo, do coração e das influências
sutis.
E o ciclo assim tem o seu
fim, cujo fim sempiterno é um re-começo eterno.
Turbilhona-se
majestosamente ao vento e depois disso... Pousa docilmente sobre o solo, até
perder duas pernas. Então, ganha quatro patas com garras o intenso movimento
torna a sua vermelhidão numa brancura cândida expressada no andar do branco
tigre metálico. Firme no caminhar. Quando malhado, ele parece movimentar-se no
repouso e ao repousar-se, movimenta-se repleto de sopros do metal, que se
afinizam com o mais yin, o solo terrestre. O seu urro ressona pelos vales para
que os habitantes saibam por si mesmos, o que há e o que não há. Assim por
assim mesmo, os sopros sintonizam-se com tudo ao que lhe convém. Por isso, que
se costuma dizer: a união do dragão verde com o tigre branco. Rei do seu
domínio dos montes e vales. Majestoso. Perspicaz. Na medida em que envelhece a
brancura metálica se esvanece...Transforma-se, então mudanças acontecem. Perde
a cor, o branco para que numa sintonia incrível, o branco do oeste, do por do
sol, da estela branca, do provir torna-se sem a cor. Fica preto, escondido, não
mais aparente, neste momento propício não mais yang e sim yin. Formam-se cascos
no dorso e no ventre. Recolhe-se ainda mais e mais... Tigre? Já não mais! Agora
chega o inverno, escurece no norte mais sombrio em sintonia com a água. Nas
fossas abissais aquáticas, entre as ondas oceânicas escurecidas num único e
ínfimo lampejo na escuridão surge, emerge a nossa personagem tartaruguês. Mais
uma vez ela desponta entre as águas. Porém, num momento diferente. Continua,
transforma, dá sequência e se muda, com os seus sopros medianos, entre o céu
ordenador e a terra responsiva.
Isso não é uma história
verdadeira, nem falsa, nem certa, nem errada! Mas, diz respeito à habilidade da
vida espontânea e ordeira da tartaruguinha, que na sintonia das coisas pode
fazer eco em cada um de nós, ao mesmo tempo, no mais profundo recôndito vazio
do nosso coração. Então, é o fim (que na tradição chinesa, quer dizer ainda não
acabou, nem acabará). Re-começo...daqui pra diante num ciclo alternante de
aparecimento e reabsorção pelo imperceptível.