sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A Tartaruga Negra e a Ave Vermelha - Um conto quase chinês contado por um brasileiro com espírito chinês


  
            Num mundo longínquo nas brumas dos tempos remotos habita uma tartaruga na ínfima caverna entre as montanhas de uma ilhota ao norte dos mares gelados.
       Ao final de cada ciclo natural completo ela protrui o pescoço para fora da morada sombria. De modo a perceber todo o movimento dos quelônios alvoroçados imbuídos de fazer os primeiros preparativos para festejos primaveris da colônia no aguardo das eclosões dos ovos dos recém-chegados convivas.
       Sheng, a tartaruga-fêmea da ilha negra do norte possuía um ar ascético entre os da sociedade quelônia. Talvez pelo seu interesse em assuntos da espontaneidade e do invisível que sentia em si própria as influências maravilhosas. Ao contrário dos demais que tinham certo desinteresse pelos afazeres daquela sociedade insular.
          Há quem diga que ela tem costumes exóticos e às vezes, até mesmo, incompreensíveis pelos insulares dos outros arquipélagos e até mesmo pelos seus compatriotas. Ora, o que se deve pensar daquele que, no alvorecer estica o pescoço sobre a rocha mais elevada do penhasco, emite um som longo e estridente ao manter-se imóvel durante horas. Enquanto isso, todos os demais se despreguiçam, içam-se, em passos curtos e lerdos ao moverem-se na busca obsessiva de alimento.
      Qual a finalidade de comer, simplesmente? Enchem-se a pança, mas esvaziam-se no mais profundo e interno. Com seu abissal pleno, o alimento deixa de ser o objeto principal da vida e tornam-se as influências sutis as reguladoras de toda a vida e de tudo no viver no visível e no invisível.
          Parece que a nossa personagem é exótica para uma tartaruga, diferente das demais se ocupa na busca incessante e espontânea do saber-viver.
       Ah, essa tartaruguinha aquática costuma desaparecer aos olhos das outras tartarugas. Cada dia, numa nova empreitada... Ela procura cruzar os distantes mares. Ela vai cada vez mais além entre os quatro mares sem começo, nem fim. Quando chega ao fim é que já está no seu começo... Sempre ao voltar, se depara com os da ilha, os preguiçosos tanatônicos que sob a luz solar dormitam ou insistam na lenta e duradoura falta da marcha espontânea. Porém, seguem semi-conscientes nas suas concatenações desenfreadas e mal pensadas espreitadas em direção à comida assaz desejada.
        Desta vez conta aos desinteressados e escassos ouvintes que chegou muito próximo da linha divisória com a ilha do leste (se é que há divisão, pensa ela, num mundo real-imaginário e este real não-visível e indizível, que em tudo há).
     Qual leste, que nada! Nisso, todos concordavam sem dar o mínimo de crédito à aventureira negra.
        Nem adianta mais dizer que ela quase se afogou na correnteza marítima e persuadida de sua convicção esforçou-se além de suas possibilidades no enfrentamento do naufrágio. Isso não bastasse defrontou-se bravamente com os vorazes e esfomeados tubarões gigantes. Famosos, naquelas paragens oceânicas por serem comedores de tartaruguinhas idealistas (principalmente exóticas e esquizóticas). E, mesmo assim, que a enxergassem como uma de fora e diferente das outras, assim mesmo, venceu predadores e revoluções dos mares, a nossa perseverante negra e aquática.E, ninguém se impressiona, nem tampouco atende ao chamado dela.
       – Hei, venham cá, a vida não é só isso o que vocês repetidamente fazem e nem bem sabem: o por quê. Mas saber para quê? A vida parece ser apenas feita de costumes, os usos de comer, beber, tanatosear, procriar...
Mas, os habitantes ilhóticos e tartarugueses preferem nada, nadar e nem pensar nisso ou naquilo outro, eles têm suas metas, metamorfoseiam-se sem perceber que o que muda é por fora e por dentro. Nada muda! Porém, para a nossa tartaruga há a transformação ininterrupta e silente no interno. Para ela a sutileza interior permite a transformação silente e inescrutável. Ah, então incita a mudança por fora qual uma raiz de árvore que nascerá a cada movimentação no in-formal, pela sutil transformação constante e ininterrupta, de acordo com a propensão da ocasião. E, em cada respiração uma nova transformação começa no inefável e continua sem rupturas no perceptível do mais ínfimo ao infinitamente grande e visível. 
Desse jeito está sempre ela propensa ao acontecimento, a ocorrência propícia de modo espontâneo sempre sob a influência maravilhosa e original. E, nisso não se importa ela em tirar proveito da situação, se será a melhor ou a mais esperta. Na busca do espontâneo original encontra-se nele sempre o nascimento de uma ocasião propícia, disso a eficácia.
- Queremos o melhor resultado e o efeito é que mais importa, não sabemos da causa. Deixamos para os especialistas das especulações.
Ela replica: nada quero, pois  o querer é egótico e ambicioso. Mas, não me solto na correnteza marítima. E, sim, vivencio intensamente o advir da propensão no meu íntimo e neste, a minha obtenção. E, o resultado vem e vai, bascula-se e a escolha é a ocasião, não ocasional, mas na origem de tudo, o espontâneo.
 E, se fosse eu um sábio não pensaria. O sábio nada sabe sobre as coisas, mas vai, além disso, pois, interessa-se ainda mais, com a relação das coisas, os entre-meios e não a coisa em si: o eu quero isso, ou é isso o que é, e o que é, então é o que mais se vale.
Mas, não se necessita de nada mais, pois se têm a raiz invisível e chegar até esta se deixando brotar o fruto, que não se faz, nem se produz, também não é agente da passiva, transforma-se da sutil originalidade que acontece no espontâneo. É o saber sem se preocupar com a sabedoria. Nesta o objeto em si não é a meta, nem tem maneira objetiva e muito menos se almeja. Não me inspiro em nada, apenas respiro o sopro, que por ninguém foi soprado, mas pelo vento original; nem sacro, nem pro-fanum, apenas traço meus passos no com-passo e com-tudo e mais-nada é tudo com todos e todos com um. Não o um supremo ou o uno. Mas, na medida das coisas de uma ação eficaz não interferida, cuja morada, também se move dentro de mim. Sendo dessa maneira obtenho o agir, fora de mim, que juntos formam uma dupla inseparável na dosagem da medida justa e correta.
E, se nada falo, ajo por dentro, se nada falo é porque não penso, por fora; fica sus-penso, então não penso. É que o pensar é também o não pensar que fica na mesma condição das coisas pensadas. Aí, deixo e minha estratégia é simples: não ter estratégia.
O funcionamento relacional é o fundo da vida que toma a frente e que de ante-mão é a mão antes de tudo, que não se conta nos dedos, acena-se, gesticula-se o gesto do invisível espontâneo, que a tudo gera e influencia num processo contínuo. Assim, acontece assim, simplesmente... O simples é o sutil que no denso se transforma em silêncio e assim nascem todas as coisas e se estas são a vida, por assim só, continuamente, sem antes nem depois, no acontecimento pela transição espontânea, por isso mesmo e assim por assim mesmo, sem mais nem menos...
            Dia após dia, ela não se entretém na luta pela vida comum, como é com todas as outras. Mas, labora em ultrapassar as suas possibilidades tartaruguêsas ao encontro da comunicação visível-invisível e vice-versa.
As tartarugas esqueceram-se de suas ancestralidades.
Ah, Gui (lê-se kuei: tartaruga, em chinês) lembra-se bem dos ensinamentos transmitidos pelos seus ancestrais e pais, eles que foram a última linhagem ritualizada dos antepassados.
A tartaruga primordial edificou através dos sopros vitais originais Yin/Yang o Céu-Terra e sobre o dorso assentava-se o Céu e no ventre a Terra. Assim, mantinham-se as cinco fases dos movimentos dos sopros luminosos e obscurecidos (yin yang) com as quatro patas que serviam de eixos de comunicação nos quatro orientes. Enquanto que, o seu corpo manifestava a sutil influência da origem espontânea. E a longevidade inerente a duração da sua existência corporal, de acordo com a unidade. A imortalidade do corpo de sopros feito de essências com sua influência sutil e maravilhosa pivoteia na individuação reconhecidamente, através das vivências cíclicas.
Uma descendente remota transmitiu os nove palácios de divisão da Terra em união com os Oito acúmulos do Céu surgidos dos sopros originais e ensinou aos mestres autênticos da antiguidade chinesa o método (tao) da tartaruga maravilhosa de inteligência espontânea.
        A inversão após a queda do conhecimento foi conseqüente ao exílio do corpo ao influente e maravilhoso do original. Desde a época da transmigração das tartarugas do outeiro primordial ao mundo atualizado, manifestado.
    O caminho da tartaruga maravilhosamente guiada pelas influências sutis consiste na reconquista da união com o tao, o movimento espontâneo movido num intuito eficaz impulsionado pela luminosidade influente e onipresente invisível no seu interior corpóreo. Com isso, a conduta mantida sob a regência da luz original em si condiz com a sua espontaneidade e autenticidade lhe torna a obter eficácia.
        Para além das coisas faladas, a tartaruguinha continua a busca da eficácia. Não havia dúvidas, nem incertezas, somente a clareza sutil acenante no seu interno, dentro das suas cinco vísceras prioritárias de sua vida cosmogênica, análogas ao centro original, com seus quatro orientes seguindo a ordem, ordenança anterior ao Céu. 
    Tanto eficaz além da fala que, até as carapaças dos seus ancestrais serviram de instrumento na queima para obtenção de soluções assinaladas pelo céu nas suas fendas escavadas gerando sinais ventosos que dirigiam as atitudes perante a vida. Assim, surge a escrita chinesa e os sinais assinalados pelo regulador céu incitaram ventosamente a resposta de uma inteligibilidade tartaruguêsa, entre as primevas tartarugas dançantes em sintonia com a música do céu regulador manifestada em sinais celestes na movimentação ventosa dos corpos celestes do corpo do mundo. Nesses rituais havia conjugação do invisível com o visível numa mesma condição. Quem fazia os rituais eram a tartaruga-rei e a tartaruga-rainha.
      ...Entre uma maré da vida e outra, novas investidas. Os quatro mares do oceano primordial estão contidos nela, silentes e seu coração consciente disso. É a sua paisagem interior tal qual é o corpo de sopros do mundo, assim também, como o de nossa tartaruga negra como as águas oceânicas dos primórdios nos confins do mundo ainda imanifesto.
    Ela na tentativa de deixar possuir-se pelo seu próprio espírito atravessa um dos quatro mares até atingir o mar do leste. De longe... Ela percebe que os habitantes dessa nova ilhota, além de possuir escamas são verdes, põem fogo pela boca e se parecem com serpentes-lagartos, alados e voadores. Na medida em que, se aprochega dos insulares do leste surge um súbito vento vindo do oriente e um clarão muito intenso promovem uma reviravolta no corpo da nossa pequena e aquática personagem que se sente como numa implosão, eclode de suas carapaças, cai num abismo marítimo, perde sua consciência. Não sabe bem o quanto permaneceu assim e ao se despertar vê-se numa planície verdejante infinita. Porém, há algo de diferente, não se sente mais aprisionada naqueles duros cascos e pesadas patas quadrangulares como a imagem terrestre. Agora, se sente mais potente esguia e escamosa metaformoseia-se em uma serpente aquática, Vence as barreiras abissais. Dessa vez nada de modo veloz entre - ondas e emerge na luminosidade do alvorecer. Ganha garras, asas, uma longa cauda e uma grande cabeça de: dragão. 
     Subitamente, inicia a falar e a compreender a língua dos dragões da madeira no leste. Tão veloz seu vôo quanto seu pensamento e imaginação. Os seus sopros têm a capacidade de tranformar qualquer coisa. A cada baforada uma nova natureza forma-se. Os dragões comunicam-se pela fala do fogo, aceso e apagado, em cada sopro exalado, uma idéia propensa. O seu corpo formado de sopros da madeira permite que acolha e drague do Céu os sopros celestes e da Terra os sopros terrestres e então eles sopram luzes e das luzes surgem sombras e da união de sombras e luzes, luzes-sombras esvaziam-se por dentro e no vazio interior suas visões transpõem o espaço-tempo e legitima-se a originalidade do não-ter corpo assim, em ter um corpo assim, num constante e mutável movimento: o do surgimento ou a madeira, que vê da árvore, que vem da raiz de tudo, que vem da espontaneidade. 
    Os dragões possuem moradias nas cavernas das montanhas do leste que nesse mundo são chamados de porta dos dragões, no idoma draconês é long men. Os vales também os têm.
     Tão cedo se desperta e vai soprar por todo o vale. Entre as nuvens. Ainda mais no alto as luminárias, suas confidentes testemunham a vastidão do seu voar. O passatempo preferido. Mas também têm suas tarefas, dentre elas as mais dignas, a de colaborar na transformação das coisas propensas e advindas do espontâneo no invisivelmente visível e no visivelmente invisível.
     A melhor das aventuras está na velocidade do vôo. Conta-se que há miríades de dragões, mas nem todos são vistos ou no céu, na terra, no ar ou no mar. Porque atingem tal ligeireza que nenhum aparelho especial pode captá-los. As suas assembléias não acontecem nesse lugar, mas num espaço invisível, um não-lugar. Num tempo que não é mais esse tempo. Os seus poderes vitais concorrem para uma única condição: fazer o que se deve ser feito com sintonia e entrosamento  nas manobras aéreas.
Na medida em que cada sopro assoprado pelos dragos seja um acúmulo de alento não soprado por ninguém, nenhum ser, mas surgido assim por si mesmo, chega-se ao porvir, com o seus bafos quentes de fogo que meneiam a vida nos vales, nas montanhas e em tudo mais.
O seu alimento é a constância entre o dragar e o bafejar. O voar e permanecer no alto e aterrissar e permanecer no baixo. Entre o acima e o abaixo as mudanças e transformações ocorrem num farfalhar das asas em meio a tudo que vem de cima e chega abaixo.
No centro desse não-espaço habita o dragão amarelo de cinco garras. Ele permite as relações de trocas em todos os quadrantes a partir do centro numa atitude de intermediação entre o alto e o baixo. Ele pode flutuar entre as ondas do mar sem desmanchá-las. Tem grande sabedoria, conhece todos os mundos e foi chamado de dragão imperial. É o dragão-rei. Ele reina pela movimentação dos sopros da terra e não do fogo, nem da madeira. E quando ele termina sua existência terrena, cada parte dele origina um constituinte dos três: de cima, debaixo e do meio. Os olhos formam sol e lua, seus músculos, as montanhas, seu alento o ar, o vento e dá vida as coisas. As veias faziam os trajetos dos condutos sutis e concretos do subterrâneo, outros de seu habitat, chamam-se veias do dragão, até hoje. O humano será feito da menor vida que se hospeda nos seus pelos entre as escamas.
A vida de dragão é uma vida transformante, a cada passo sobre a terra, o mar, na montanha ou no vale, uma  nova mudança de vida...
E, o nosso dragão-rei voa e por onde voa espalha sopros de vida que nascem, mas que também morrem se queimam e surgem as suas cinzas, delas surge o fogo que não queima, mas que transforma na condição do seu ciclo na sucessão das coisas espontâneas e assim se vai e assim se vem. Esse novo começo ainda não é um começo e quando chegar ao final será o re-começo.
O dragão sobe as montanhas celestes e fica sem as escamas. Surgem as penas. O sopro transforma a boca em bico e as asas majestosas são a imensidão do tamanho do mundo
O céu azul no infinito, nele a ave maravilhosa de tamanha infinitude de coloração vermelha nascida do fogo. Fogueia, fogueia. No bater das asas monta sobre o vento e voa, voa... Lá, do alto regula o vento abanado pelas suas asas num soprar através e além do fogo, então imanifesta-se à medida que se manifesta no ritual festivo fogoso e majestoso... Sobe o fogo e formam-se nuvens então sobrevém a descida d’água, a sua acolhida pelo solo. Assim é um vai e vem, vem e vai na cadência da movimentação das asas da ave maravilhosamente vermelha,cor do fogo, do coração e das influências sutis. 
E o ciclo assim tem o seu fim, cujo fim sempiterno é um re-começo eterno.
Turbilhona-se majestosamente ao vento e depois disso... Pousa docilmente sobre o solo, até perder duas pernas. Então, ganha quatro patas com garras o intenso movimento torna a sua vermelhidão numa brancura cândida expressada no andar do branco tigre metálico. Firme no caminhar. Quando malhado, ele parece movimentar-se no repouso e ao repousar-se, movimenta-se repleto de sopros do metal, que se afinizam com o mais yin, o solo terrestre. O seu urro ressona pelos vales para que os habitantes saibam por si mesmos, o que há e o que não há. Assim por assim mesmo, os sopros sintonizam-se com tudo ao que lhe convém. Por isso, que se costuma dizer: a união do dragão verde com o tigre branco. Rei do seu domínio dos montes e vales. Majestoso. Perspicaz. Na medida em que envelhece a brancura metálica se esvanece...Transforma-se, então mudanças acontecem. Perde a cor, o branco para que numa sintonia incrível, o branco do oeste, do por do sol, da estela branca, do provir torna-se sem a cor. Fica preto, escondido, não mais aparente, neste momento propício não mais yang e sim yin. Formam-se cascos no dorso e no ventre. Recolhe-se ainda mais e mais... Tigre? Já não mais! Agora chega o inverno, escurece no norte mais sombrio em sintonia com a água. Nas fossas abissais aquáticas, entre as ondas oceânicas escurecidas num único e ínfimo lampejo na escuridão surge, emerge a nossa personagem tartaruguês. Mais uma vez ela desponta entre as águas. Porém, num momento diferente. Continua, transforma, dá sequência e se muda, com os seus sopros medianos, entre o céu ordenador e a terra responsiva.
Isso não é uma história verdadeira, nem falsa, nem certa, nem errada! Mas, diz respeito à habilidade da vida espontânea e ordeira da tartaruguinha, que na sintonia das coisas pode fazer eco em cada um de nós, ao mesmo tempo, no mais profundo recôndito vazio do nosso coração. Então, é o fim (que na tradição chinesa, quer dizer ainda não acabou, nem acabará). Re-começo...daqui pra diante num ciclo alternante de aparecimento e reabsorção pelo imperceptível.