quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Metáforas, Mitos do Imperador Amarelo e a Perda Mítica na Tradução dos seus Cânticos






Orley Dulcetti Junior
Doutorando da PUC-CRE/SP
Artigo científico publicado na Revista do Congresso em Ciências das Religiões da PUC-Goiânia 2009


            Resumo: O presente trabalho aborda o estudo das metáforas e alusões míticas correntes nos textos de taoísmo contidas no livro de medicina tradicional chinesa denominado: Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huang di nei jing 黃帝內經 ). A partir de extratos dos textos dessa obra matriz em chinês clássico com a tradução para o idioma português feita pelo próprio autor realizar-se-á, também, uma amostragem de análise comparativa com extratos de traduções para o idioma ocidental. Além disso, segue uma avaliação desse fenômeno de transplantação cultural.

Palavras chave: Taoísmo, Nei Jing, metáforas míticas, tradução, transplantação cultural.


Taoísmo
           
            A tradição chinesa é o taoísmo que possui o seu epônimo: o Imperador Amarelo (黃帝 Huang di). Ele é o Imperador mítico fundante da civilização chinesa e da sua medicina. O título desse regente é uma metáfora, huang o termo amarelo, primeiramente tem o sentido literal: a cor do rio e da terra onde surge a nação da China, a cor do metal ouro Jing . Na ocorrência do desvio do sentido torna-se metafórico e pela analogia o termo chinês traduzido pela palavra amarelo passa a significar realeza, nobreza e perfeição.
O vocábulo Imperador Amarelo assume uma forma de expressão de figura de linguagem considerada uma metonímia, sinédoque e um epônimo. Pois, também se refere ao título do livro de medicina chinesa: Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huang di Nei Jing).
Como a medicina chinesa é a extensão do taoísmo, principalmente, e secundariamente do confucionismo e até budismo chinês em textos posteriores ao Nei Jing,  segue uma introdução ao estudo do Taoísmo.
Assim, as metáforas taoístas no texto do Clássico do Imperador Amarelo serão discutidas numa perspectiva contextual e histórico-cultural do taoísmo na China do século VIII d.C., época da publicação desse texto comentada por Wang Bing.
O Taoísmo origina-se na China juntamente ao surgimento dos primórdios desta civilização e forma-se através de um processo de amadurecimento no transcorrer da sua própria história. (LARRE, 1982).
            A atitude prática perante a vida fundamenta o Taoísmo, o qual pode apresentar diferentes expressões como o modo de pensar e de sistematizar o mundo, maneira religiosa, de moral e ética. (CHENG, 2008).
            O pensamento do taoísta, o praticante do tao provém de uma diversidade de práticas mágico-ritualísticas nos primórdios da Antiga China. Também, da religião popular, de métodos corporais, exorcistas, médicos, especulações cosmológicas, além das adivinhações realizadas por meio de observação dos fenômenos da natureza, dos astros; das atividades chinesas feitas no isolamento mundano, ou dos artesãos como conhecedores de sua produção artística. E dos pensadores do período clássico chinês que sistematizam a cosmologia e a vida no tao, ou caminho. (Ibid, 1982).
            No idioma português o vocábulo Taoísmo compõe-se do neologismo de empréstimo da fonética chinesa do sinograma tao e do sufixo - ismo (grego –ismós, terminação –μός)
Etimologicamente, o termo Tao, segundo Wieger (1974) é a “grafia de uma cabeça com cabelos despenteados”, a do taoísta primevo associado à três passos e “evoca uma marcha dançante”. Os seus passos reproduzem os “passos do Tao ao imitar o nascimento do cosmos”. O tao é a via, “ir com a cabeça (shou)”.
O Tao traduz-se por caminho, “não só para andar com os pés, mas também para mover o pensamento”. (WILDER & INGRAM, 1974).

O Tao pode ser traduzido num sentido próprio e figurado por associação de idéias ao sentido literal como a Via, Caminho (Tao lu道路). Via do Céu (天道). Além disso, significa: Via a seguir, encaminhamento, conduzir, caminhar, avançar; ensinar, instruir (Tao); falar, enunciar, doutrina; princípio (Tao li道理), regra, método; moral (道德), uma arte de se comunicar, um poder, procedimento. (RICCI DICTIONAIRE, 1976).
            O Tao pode ter o sentido de espontâneo, em chinês Ziran自然, por si mesmo. Ele faz ocorrer as Transformações (Huá), por isso, o Tao é o movimento espontâneo. Assim, o caminhar pela Via é um processo continuo de desenvolvimento e aprimoramento interno. A Via está sempre além dos encaminhamentos pessoais. Presente em tudo e funde-se a todos.


Mestres do Tao e os Clássicos

            Os textos de fundamentação das teorias, condutas e práticas do taoísmo são os Clássicos Taoístas. A “eles que se recorre regularmente para dar fundamento a teorias e condutas, bem como a outros textos, escritos por um mestre ou assim revelados” (ROCHAT, 2001).
            Há quatro principais mestres e obras do Tao:o Laozi,o Zhuang zi,o Lie zi e o Huainanzi com suas respectivas obras: O Clássico da Via e da Virtude (LaoziTaoTeJing), publicado durante a segunda metade do século  III a.C.  atribuído ao mítico “velho mestre”, o Laozi. Os Capítulos Internos de Zhuang zi (Zhuang zi Nei Pian莊子內篇) publicado entre os séculos IV e I a. C.. O Lie zi foi escrito no século IV d. C., oitocentos anos depois de sua época. O pensamento taoísta de Zhuang zi e Lie zi são similares aos de Laozi (LARRE, 1982).
O primeiro e mais importante tratado sinomédico da Antiguidade, o texto que pode ser traduzido por Clássico Interno do Imperador Amarelo , cuja pronúncia em chinês mandarim é Huang di Nei Jing (黃帝內經) começou a ser redigido no período de guerras, nos Reinos Combatentes (453-222 a . C.) seguindo pela dinastia dos Han Anteriores (206-8 a .C.) até chegar aos Han Posteriores (25-222 d.C.). Após, foi completado durante os Tang (618-908 d.C.) por Wang Bing (século VIII d.C.) que acrescenta alguns capítulos posteriormente. (UNSCHULDT, 2003).
O Clássico Interno do Imperador Amarelo, ou simplesmente Clássico Interno, em chinês, Nei Jing foi compilado por Wang Bing e data-se de 762 d. C. E constitui-se de 9 Juan (rolos) a primeira parte, o QuestõesSimples, o 素問 Su Wen e 9 Juan a segunda parte, o Eixo espiritual, o靈樞 Ling Shu. Cada parte contém oitenta e um capítulos (Pian). O pensamento taoísta de Lao ZI e de Zhuang Zi tem profunda influência sobre a obra de Wang Bing estruturado pelas teorias cosmológicas como, Tao, Yin Yang, Cinco Fases. .(TRIADOU, 1995).
Esse texto de MTC possui na sua estrutura uma forma poética metrificada, ritmada e com rimas para ser entoado à plena voz. Contém o estilo clássico neotaoísta repleto de figuras de linguagens, metáforas do taoísmo e alusões míticas próprios da retórica do taoísmo da época.



A Metáfora, em chinês bi ().
            Há uma antiguidade e amplitude de conteúdo no ideograma bi que expressa o sentido de comparação e por extensão: a metáfora. Além disso, o termo xing que significa incitação participa funcionalmente como figura de linguagem na poesia da China Antiga e por extensão: metonímia (CHENG, 1979).
Ainda, bi perfaz com o termo xing através da dupla bi/xing, o correspondente aproximativo  ao idioma indo-europeu de metáfora/metonímia. Consistem numa das seis duplas de principais figuras de sentido ocorridas na poética clássica estudadas na lingüística chinesa desde a dinastia do Han. (CHENG, 1977).
“O Bi é propor uma comparação à coisa dita. O Xing é expressar uma idéia, ou um sentimento a partir de uma coisa evocada”- afirmou Zhen Zhong ao analisar o “ Clássico das Odes”(Shi Jing 詩經) durante a dinastia Han.(CHENG,1979).
 O caractere chinês possui dupla função: imagem como elemento de comparação e analogia. E o sentido o qual expressa a idéia ou sentimento através do figurado. O primeiro explicito e o segundo mais implícito estão presentes e abertos no campo simbólico que gera outras significações o que permite interpretações novas de ordem filosófica ou social. Agem no imaginário  e amplificam o sentido (Ibid, 1979).
Lexicalmente, o Dictionnaire Français de la Langue chinoise ( Ricci Institut, 1990) na página 741, traz o termo duplo bi yu 比喻 (3938) como tradução para o francês “méthaphore, comparaison”.
A China dos Han já possuía linguística própria e seus textos receberam glosas entre os Tang e os Song. (CHENG, 1979).
            Os termos chineses antigos escritos na literária taoísta são os sinogramas os quais consistem em símbolos gráficos (parte de um referente concreto e representa uma noção abstrata). Além disso, eles se caracterizam pelo valor polissêmico (do grego polis, polis, muito e sema, sema, significados), de valor lexical, referencial ou denotativo (usual, literal), conotativos (figurado) e principalmente metafóricos e simbólicos. Recomenda-se o estudo contextual para se obter o sentido exato do ideograma devido a sua pluralidade semântica (KEH-LI,1991).
            Um caractere chinês possui um sentido próprio na correspondência ou representação gráfica de um objeto concreto (proveniente da pronúncia da língua falada) e vários outros significados em analogia ao sentido inicial. (Ibid,1991)
O sentido figurado pode se referir a três regras: por extensão do sentido próprio, restrição do sentido próprio, transferência de significação. (Ibidem, 1991).
Os Mitos
            O termo mito em chinês pronuncia-se Shen Hua ( 神話 ) e traduz-se por fala dos espíritos, shen : espiritual...e hua fala.(BIRRELL, 1994). Enquanto para as línguas indo-européias mito no grego, μύθος , discurso, narrativa, mudo, oculto
            O conteúdo dos mitos chineses
            Há uma singularidade nos textos taoístas de cosmogonia . Eles não fazem alusão a seres superiores organizadores do mundo. Mas existe uma espontaneidade ao natural reguladora e manifestante na formação, mudanças e transformações graduais a partir do Tao, os sopros vitais Yin/yang, a estabilidade estrutural dos constituintes pré-cosmológicos. Para em seguida suas coagulações e dispersões darem nascimento ao Céu , a Terra, ciclos e a antropogonia com o nascimento dos dez mil seres. Também a singularidade esses mesmos textos com ausência de uma causa que produza efeitos distintamente do contexto de causalidade grego-latina.(KALINOWISK, 1996).

A formação do Céu/Terra e dos seres a partir do Tao em Lao zi, 25:
O Tao faz nascer o Um,
o UM faz nascer o Dois,
o Dois faz nascer o três
e o Três faz nascer os Dez Mil seres.

O Clássico da Via e da Virtude (Tao Te King) fornece a cosmogênese chinesa no taoísmo dos Reinos Combatentes, através dos números, numa seqüência bem estabelecida. O Tao  é a Via (espiritual) que faz nascer primeiro no Vazio original a esfera única, ou o Ovo da mistura primordial (hundun ) na presença dos sopros primordiais.


  1. fig 1 capa do Laozi Daode jing


Em segundo, esses sopros formam as duas potências: a luz primordial, o Yang ou sopros Yang e a obscuridade, o Yin ou sopros Yin. Em terceiro, a movimentação dos sopros Yin/Yang no vazio mediano no intervalo Céu/Terra. São os sopros primordiais atualizados na formação do mundo e do vivente. (LARRE e ROCHAT, 2005).

fig 2 manuscrito 

Os Cânticos de Huang di : o Clássico Interno do Imperador Amarelo

Excertos de tradução do Clássico Interno do Imperador Amarelo e alguns exemplos de metáforas taoístas extraídas do mesmo:
Questões Simples do Clássico Interno do Imperador Amarelo 帝內 素問
Tratado sobre os autênticos da alta antiguidade, capítulo 1:
                        第一 (Shàng   gǔ tiān zhēn   lùn piān dì)



 fi 2 capa so Nei Jing compilação 

Antes dos tempos existia o Imperador Amarelo :  
                                                                     xí zài huángdì 
Ele nasceu  da Eficácia Espiritual;         
                                                    shēng   ér shén líng 
Na primeira infância, já conseguia falar;     
                                                              ruò ér  néng yán 

Criança conduzia-se com justeza ;                          
                                                       yòu         ér        xún   qí
Adulto, acharam-no leal e perspicaz ;                     
                                                        Cháng    ér   dūn   mǐn 
completo ascendeu ao Céu.                         
                                               Chéng    ér       dēng   tiān  
           








Antes dos tempos refere-se à indeterminação do espaço-tempo como em “Antes dos tempos houve o Imperador Amarelo”, patrono da civilização chinesa descendente dos autênticos do Céu da alta antiguidade. Como ocorre com os ideogramas textuais Gu ou Gu denotam anterioridade de tempo juntamente aos seres celestes e perfeitos, assim, shang gu alta antiguidade todos esses ideogramas fornecem a noção de atemporalidade. (LARRE, 2005). 
No texto fundamental do taoísmo, o Clássico do Caminho (Tao) e da Virtude (te) de Laozi, Tao Te Jing, capítulo 39, faz a alusão ao começo absoluto, ao início da cosmogonia num tempo primordial. O texto contém na sua primeira linha:
Antes dos tempos (Xi) possuíam a Unidade                                          
xí         zhī      de       yī         zhě
O termo chinês Xi, na tradução feita pelo autor como “Antes (dos tempos)” no Nei Jing,1 faz referência a primordialidade do ser, no Hundun , a mistura indiferenciada dos sopros vitais, a unidade nascida do Tao.
Ainda, no Lao Zi, 39, na tradução do próprio autor pode-se ler a menção a “Os espíritos possuem a  unidade na eficácia” (Shen de yi yu Ling ), metáfora do Espírito, correspondente ao mesmo termo no Nei Jing,1. E os reporta ao Uno Primordial. Sugere a legitimidade da autoridade espiritual ou mandato celeste (天命Tian Ming) do Imperador Amarelo.
O Céu possui o Uno pela pureza.
A Terra possui o Uno pela tranqüilidade.
Os Espíritos possuem o Uno pela sua Eficácia. (Laozi,39 tradução do autor).

         Outro trecho do capítulo 1 do Clássico Interno:
Qi Bo respondeu:
Os Homens da alta antigüidade
Foram os sábios que obedeciam ao Caminho (Tao)
E se regulavam pela luminosidade e obscuridade ( Yin  Yang)
E se harmonizavam através de práticas ( taoístas ) e pela                           numerologia tradicional
(Clássico Interno do Imperador Amarelo, Questões Simples, 1. Nei Jing Su Wen, 1).



            O capítulo três do “Questões Simples do Clássico Interno” (Nei Jing Su Wen) intitulado: “Tratado do nascimento dos sopros vitais em comunicação com o Céu” começa assim:

Huang di diz:
Desde a antiguidade a comunicação com o Céu
Raiz da vida
Enraíza-se na obscuridade e luminosidade (Yin Yang).
No intervalo Céu Terra, dentro das seis uniões os sopros vitais
Nove Territórios, Nove cavidades, cinco entesourizadores, doze articulações.
Todos em comunicação com os sopros celestes
Deles nasce o Cinco. Deles, os três sopros .
Ao se ir contra os números
Os sopros perversos afetam o homem
Eis o enraizamento do mandato da longevidade. (tradução do autor).

O número três mostra a influência cosmogônica proveniente do Tao (O Tao faz nascer o um,o um faz nascer o dois, o dois faz nascer o três, e o três faz nascer os  dez mil seres . Laozi, 42,).(tradução do autor) 
“Desde a antiguidade” refere-se ao início, primórdio das coisas, antes do tempo. (LARRE & ROCHAT, 2005).
            O tempo mitológico que descortina a cosmogênese taoísta. A partir do Céu ou a Via do Céu nome completo do Tao. O termo chinês Tao designa também o Céu, a  Unidade, o Uno (PALMER, 1991).
            “Antes, o Céu e Terra não existiam, nada parecia ter forma”. (Huainanzi,7,tradução de KALINOWISKI, 1996).
            O Céu é o Um Primordial, Também é o Tao que segundo Kalinowiski (1996) consiste  na fase pré-cosmológica  O dois são os sopros Yin Yang, o três forma o Homem depois do Yang  gerar o Céu e o Yin , a Terra. Originados Céu/Terra a partir dos sopros iniciais e depois do Yin/Yang é a fase cosmológica (Ibid).
             E o quatro são os quatro sopros que se repartem e formam as quatro estações. Os cinco são os cinco agentes resultantes dos cinco movimentos do Yin Yang  são: a madeira, fogo, terra, metal e água que geram a forma dos seres. (LARRE & ROCHAT, 2005).
            A partir do Yin Yang surgem os ciclos vitais dos sopros das estações, do espaço e tempo, ciclo dos cinco elementos ou agentes , a condensação dos sopros como substância, sempre sob a ordenância do Tao. (KALINOWISKI, 1996).
            “O acúmulo do Yang faz o Céu, O acúmulo do Yin faz a Terra”. (Nei Jing SuWen, 5, tradução do autor).            
            No vazio mediano entre Céu e Terra movem-se e transformam-se os viventes através dos sopros YinYang. Esses viventes correspondem ao terceiro componente do Céu/Terra/Homem na seqüência cosmogenética. O homem é o que possui os nove buracos no corpo, cinco órgãos, doze articulações ósseas e doze condutos dos sopros no corpo ao quais permitem a livre comunicação ininterrupta com o Céu, o Tao, nos sopros primordiais (LARRE & ROCHAT, 2005).
Os números fornecem como emblemas simbólicos os princípios taoístas numa hierarquia cósmica, através do sequenciamento da formação do corpo do mundo, Céu/Terra e depois do corpo do pequeno mundo: o homem.São metáforas de corpo. São os sopros do Céu, da Terra e da conjugação de ambos: os sopros do Homem (DESPEUX, 1988).









A perda do mito na tradução dos Cânticos do Imperador Amarelo

A tradução inglesa de Ilza Veith:

A tradutora (Veith, 1972) baseia-se na matriz da edição mais antiga do Nei Jing, de Wang Bing dos Tang. Mas, não obedece a estrutura poética original do texto e realiza uma tradução sob a forma de prosa. Descontextualiza a forma.
A característica da narrativa mítica e cosmológica no Nei Jing é o Cântico: poema ritmado, rimado com estrofes e versos.(LARRE, 1987). Nessa tradução perde-se o mito.
O título do seu livro:The Yellow Emperor’s Classic of Internal Medicine pode ser traduzido ao português como O Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo ( Huangdi nei jing). O termo Nei () foi traduzido por “medicina interna” e possui uma conotação num contexto atual, biomédico, também pode se tratar de  uma especialidade da medicina Ocidental. De acordo com as observações e classificações  de Hsu (2003) feitas sobre o ensinamento nos textos de MTC, a  tradução possui a maneira interpretativa “modernizada” (xiandahua) do conhecimento da medicina chinesa, bem como de ‘feitura científica” (kexuehua) uma reinterpretação materialista das noções taoístas e cosmológicas.
Como fez o autor, Rochat e Larre (1993) expressam ( Huangdi nei jing)  como o  “Clássico Interno do Imperador Amarelo” . O termo Nei () o íntimo, no centro ou no “coração do mistério da vida, um ensinamento autenticamente vital: ‘O interno é a Via da via’”. Mantém a concordância cosmológica do taoísmo: “os cinco internos (wu nei 五內) representando os cinco órgãos profundos do corpo humano”, em a analogia com as cinco fases da cosmologia chinesa.
Ilza Veith (1972)  traduziu o Nei Jing, 1,(Shang gu tian zhen lun) com o título: “A verdade natural nos tempos antigos”.”Treatise on the natural truth in ancient times”
Na primeira estrofe “Nos tempos antigos o Imperador Amarelo nasceu...”
In ancient times the Yellow Emperor was born
Embora se tenha traduzido o advérbio Xi () por “... tempos antigos” a autora o situa no tempo natural e linear. Não leva em conta o tempo  mítico, cíclico e alinear como o da cosmologia chinesa. Assim como, na análise de Feng ( 2003) pôde assinalar na tese de doutorado na École Pratique des Hautes Études, em ciências religiosas :
Essa divergência entre a China e o resto do mundo pode ser explicada pela diferença das noções de tempo e de espaço na cosmologia chinesa e naquelas de outras civilizações. A noção cíclica cosmológica afirma que os movimentos no tempo e no espaço são todos cíclicos e têm marcado profundamente o pensamento chinês, na qual a noção de tempo cíclico prevalece sobre a noção linear e o raciocínio correlativo torna-se mais importante que aquele da causalidade. (FENG, 2003).

Além disso, devido ao fato de Veith (1972, p. 4) declarar na introdução de sua tradução que para ela é muito difícil decidir se o Imperador Amarelo foi uma “personalidade atual ou mítica” confirma a perda mítica na sua interpretação.
- Was a mythical or an actual personality is very difficult to decide.

Na tradução francesa de Ung Kang Sam e Chamfrault(1973):

No tomo II do Traité de Médecine Chinoise Ung Kang Sam e Chamfrault (1973) traduzem o Nei Jing de Wang Bing dos Tang, em prosa, de modo a descaracterizar a estrutura original poética e versiva.
No seu capítulo primeiro, Su Wen,1 (Shang gu tian zhen lun) lê-se traduzido : “ a verdade segundo os preceitos divinos da idade antiga”.
La vérité suivant lês préceptes divins à l’âge  antique.
Não ocorre no texto chinês referência alguma aos “ preceitos divinos” . Mas está escrito: “autênticos do céu da alta antiguidade”.
 Embora a tradução sugira a inclusão da cosmologia chinesa os autores omitem os seis primeiros versos que apresentam a figura central e mítica do Imperador Amarelo o qual foi analisado anteriormente .

Na retradução portuguesa brasileira de Cruz (2001):
A tradução feita a partir de recompilação chinesa simplificada da edição de   Wang Bing dos Tang segue em modo de prosa, não poética.
O título (Huang di nei jing) foi traduzido por Cruz: “Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo” numa reinterpretação materialista das noções  do taoísmo. O termo Nei, traduzido por “medicina interna”,conforme analisado anteriormente recebe uma tradução modernizada e de feitura científica. (Hsu, 2003).
O Nei Jing, 1 ou Su wen 1, foi traduzido “Questões Fáceis” numa reinterpretação do termo Simples (Su) no sentido de simplificação e ressignifica o vulgar como o simples na desvalorização da metáfora mítica do termo Su.
Segundo o  Dictionaire Ricci (1990) Su ( ):No taoísmo: estado do ser anterior a toda determinação, da natureza antes de toda a civilização. Desde a origem.” (RICCI, 1990, p. 863).
Na primeira estrofe do Su Wen,1 traduz Cruz(2001):
O Imperador Amarelo, de grande antiguidade, quando nasceu já era brilhante e sábio, bom de se conversar quando era criança, tinha uma maneira modesta de proceder e uma lisura de caráter quando cresceu; em sua juventude honesto e possuía uma grande habilidade em distinguir o certo do errado. Quando chegou a idade correta tornou-se Imperador.(CRUZ, 2001, p.25).


A noção de indeterminação do tempo designada pelo advérbio Xi no texto original foi ressignificado pelo conceito de tempo linear: “de grande antiguidade” conduz a uma interpretação: “muito antigo”.Assim, mantém o tempo e espaço lineares, destitui-se do tempo cíclico cosmológico (FENG, 2003).
O advérbio Xi “outrora”, “Antes” designa um tempo mítico, primordial e atemporal. (ROCHAT e LARRE, 1993).
No último verso segue: “Quando chegou a idade correta tornou-se Imperador” não consta no texto chinês nesse verso que ele tornou-se  Imperador.Mas , sim : “ascendeu ao Céu”.

A tradução inglesa de Zhou (1999):
Zhou (1999) traduz a partir da versão ideogramática simplificada da edição de  Wang Bing. A apresentação do texto traduzido segue o formato de “mangá”, espécie de “gibi”, “estórias em quadrinhos”
A nova escrita chinesa, o ideograma simplificado segue a ideologia de Mao, marxista e nacionalista (HSU, 2003).
O texto traduzido omite a primeira estrofe com os seis versos metrificados que faz a introdução mítica do Imperador Amarelo.
Faz uma menção no estilo mangá e desmitificado : “Na infância o Imperador Amarelo era muito esperto e aprendia as coisas rapidamente”.
Segundo Hsu (2003) um modelo estandartizado da transmissão da MTC nos textos.



 Avaliação do fenômeno de transplantação religiosa:

            Segundo  Michael Pye(1969), no artigo The Transplantation of Religions, in: Numen: 16, explicita o modelo de transplantação:
Na primeira fase do contato ao se considerar sistemas religiosos há modificações ideológicas numa  determinada religião. A segunda etapa pode ser representada por religiosos numa situação ambígua. Isto ocorre devido à coexistência entre os elementos da tradição que foi transplantada e de conteúdos da outra tradição. No terceiro estado do processo de transplantação ocorre a fase de recuperação. Embora haja revalorização dos conteúdos tradicionais a religião assume forma diferente a anterior.
No que concerne ao presente texto traduzido estudado e comparado nota-se a ocorrência do fenômeno de transplantação: há a modificação ideológica do taoísmo para o pensamento ocidental da época ao qual foi traduzido recebendo uma modernização conceptual e, portanto anacrônica.
           



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA



CHENG, François. L’Ecriture petique chinoise. Paris: Seuil, 1977.
______.  Vide et plein. Paris: Essais, 1991.
______. Bi e Xing. Cahier de Linguistique-Asie orientale, v1 n. 6, 63-74,1979.

DESPEUX, Catherine. Les corps methaforique dans la tradition chinoise. Acupuncture & Moxibustion. Vol. 2. n. 3., 2003.

FENG, Congde, Les Cinq Cycles et les Six Souffles - La cosmologie de la médecine chinoise selon les Sept Grands Traités du Suwen thése doctorat, EPHE, Sciences Religiouses, DOC 351, Dir. : M. Kalinowski, 2 vol. Date : 03/07/2003

KALINOWISKI, Marc. Mythe, cosmogénèse et théogonie dans la Chine ancienne. Paris : L'Homme, Volume 36, Numéro 137, p. 41 – 60, 1996.

KEH-LI,Fan. (1991). Le mot vide dans la langue chinoise classique. Paris : Librairie You Feng.
______. Les modèles de phrases dans la langue chinoise classique. Paris :Librairie You feng, 2006.

RICCI INSTITUT. Dicionaire français de la langue chinoise. Taipei : Kuangchi Press, 1990.

TRIADOU, Patrick. Histoire du Su Wen. Revue Française d’Acupuncture, 83. Paris: AFA, 1995.

UNSCHULDT, Paul. Huang Di nei jing su wen : nature, knowledge, imagery in an ancient Chinese medical text, with an appendix, The doctrine of the five periods and six qi in the Huang Di nei jing su wen. London, England: University of California Press, Ltd., 2003.

WIEGER. Les Péres du Systéme Taoiste. Paris: Ed. Cathasia 1950.




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